Se me dissessem que o primeiro filme que eu iria ver ao cinema pós-pandemia COVID era o filme da Barbie, eu responderia "O QUÊ?", mas foi o que aconteceu há dias. (Curiosamente o último filme que fui ver ao cinema pré-pandemia foi "As Mulherzinhas", também da Greta Gerwig.)
Seja como for, o filme está a ser um fenómeno e, talvez inevitavelmente, trouxe de volta memórias de uma canção que, embora não faça parte da banda sonora (pelo menos não na versão original), tem sido indelevelmente associada com a boneca mais famosa do mundo desde que escalou os tops pelo mundo afora nos idos de 1997. Falo obviamente de "Barbie Girl" da banda pop dinamarquesa Aqua. Goste-se ou deteste-se, não há como negar que esta é uma das canções mais icónicas da segunda metade dos anos 90 e que é um must nas festas temáticas dedicadas a esse decénio.
Aliás, a primeira vez que ouvi "Barbie Girl" foi uns meses antes do seu sucesso internacional, quando a popularidade ainda estava basicamente circunscrita ao reino da Dinamarca. Foi quando estava a ver na RTP o concurso de manequins Elite Model Look de 1997 (cuja vencedora foi uma muito jovem Soraia Chaves) e um dos convidados musicais eram precisamente os Aqua, com os apresentadores (não me recordo quem) a descreverem o seu estilo musical como "happy pop". Foi aí que ouvi pela primeira vez "Barbie Girl" onde certas partes como "I'm a Barbie girl, in a Barbie world" e "Come on, Barbie, let's go party" ficaram-me logo no ouvido. Lembro-me de achar que, apesar da combinação bizarra de um Ken careca com voz de Monstro das Bolachas e de uma Barbie bem menos comedida e angelical que a prototípica boneca (se bem que igualmente atraente) com voz de balão de hélio, ou talvez precisamente por causa disso, era uma canção extremamente divertida com o seu quê de subversiva, pelo que não fiquei surpreendido quando meses mais tarde "Barbie Girl" rodava nas rádios e na MTV e afins, rumo ao sucesso planetário.
Mas comecemos pelo princípio. Corria o ano de 1994, quando dois jovens compositores e amigos de infância, Soren Rasted e Claus Norreen, foram encarregados de criar a banda sonora para um filme infantil dinamarquês: "Fraekke Frida og de frygtlose spionner" (traduzindo, é qualquer coisa como "Frida Marota e os Espiões Temerários"). Para algumas das canções, recrutaram a colaboração de um DJ de seu nome René Dif, que andava pelo mesmo estúdio. Os três gostaram de trabalhar juntos e começaram a congeminar a ideia de formar uma banda juntos. Foi então que Dif sugeriu que também entrasse no projecto uma jovem norueguesa que ele tinha conhecido quando a viu a cantar num ferry que fazia a travessia entre a Noruega e a Dinamarca, e com quem viria a namorar pouco depois. Essa jovem era Lene Nystrom, que conjugava a sua carreira de cantora com trabalhos como manequim e assistente de concursos televisivos (ao que uma vez li, chegou a ser uma das Ruth Ritas da versão norueguesa de "A Roda Da Sorte"). Rasted e Norreen acederam e em 1995, o quarteto lançaria o seu primeiro single sob o nome de Joyspeed, uma versão da cantilena infantil "Itsy Bitzy Spider".
Contudo foi no ano seguinte, com um novo contrato e a mudança de nome para Aqua, que o grupo iniciou o seu caminho rumo ao sucesso. O seu primeiro single, "Roses Are Red", foi n.º 1 do top dinamarquês e valeu-lhes uma nomeação para os prémios da música dinamarquesa. O single seguinte "My Oh My" e o álbum "Aquarium" saíram no início de 1997 mas seria o terceiro single "Barbie Girl" a catapultá-los para um sucesso além-fronteiras. Sim, havia a irresistível batida eurodance, havia a bizarra mas eficaz química entre essa Barbie e esse Ken inconvencionais (ainda que por esta altura Lene e René já não namorassem), mas claro que o ingrediente especial era a provocação a todo o imaginário dessa instituição que é a boneca Barbie. Um imaginário e uma instituição tão presentes na cultura pop que até aqueles como eu que nunca tiveram nenhum interesse em brincar com Barbies (nem sequer para as despir ou danificar) estão bem cientes deles.
Desde praticamente a sua criação que Barbie tem sido alvo de vários ataques desde as suas medidas corporais irrealistas ao apelo ao consumismo, passando pelo alegado feminismo performativo. Também praticamente desde a mesma altura que a sua empresa criadora e fabricante, a Mattel, tem feito o possível para desmentir ou menorizar as críticas à sua joia da coroa e conferir-lhe toda a dignidade. E com versos como "you can brush your hair, undress me everywhere" ou "I can act like a star, I can beg on my knees", dignidade não era bem o que "Barbie Girl" pretendia elevar em relação à sua boneca-musa e claro que isso enfureceu a Mattel.
A Mattel já movera no passado acções judiciais contra artistas que fizeram intepretações subversivas da Barbie (como por exemplo a cantora luso-belga Lio nos anos 80) mas o processo que moveu contra os Aqua via a sua editora nos Estados Unidos foi de longe o mais famoso, arrastando-se até 2002 com a decisão judicial a favor do grupo.
Mas se o processo acabou por refrear o sucesso dos Aqua nos Estados Unidos, no resto do mundo "Barbie Girl" foi n.º 1 dos tops de inúmeros países. Por exemplo, contando apenas vendas tradicionais, é ainda hoje o 16.º single mais vendido de sempre no Reino Unido. E na verdade, a maioria das pessoas esteve-se nas tintas para as conotações sexuais e miúdos e graúdos trauteavam, uns alegremente, outros como ironia, a canção. Uma das minhas memórias mais ternas com a "Barbie Girl" foi no baile de Carnaval da minha escola secundária: quando tocava a canção, os rapazes gritavam de um lado "Come on Barbie, let's go party!" ao que as raparigas respondiam com "Ah ah ah yeah!" e "Uh oh uh, uh oh uh!".
Tudo isto sem ainda termos falado do icónico videoclip filmado no maior estúdio cinematográfico de Copenhaga, com a cenografia a recriar deveras fielmente, pese uma ou outra subversão, o universo da Barbie à escala humana. Creio mesmo que estaria muita próxima da cenografia que teria a Barbie Land se o filme da Barbie tivesse sido feito em 1997.
Em 1998, os Aqua tiveram mais dois singles no primeiro lugar do top britânico: o single subsequente "Doctor Jones" e aquela que é para mim de longe a obra-prima dos Aqua, a sublime balada "Turn Back Time", incluída na banda sonora do filme "Sliding Doors - Instantes Decisivos". Isto para além de outros hits como o reeditado "My Oh My", "Lollipop (Candyman)" (o seu único outro hit nos Estados Unidos) e "Good Morning Sunshine". Paralelamente, o álbum "Aquarium" foi campeão de vendas e colecionou discos de ouro e platina por todo o mundo (Portugal incluído). É o terceiro álbum mais vendido de sempre na Dinamarca, com 350 mil cópias - impressionante se pensarmos que na altura este país tinha basicamente metade da população de Portugal.
Em 2000, saiu o segundo álbum dos Aqua, "Aquarius", e mesmo sem o sucesso estrondoso do primeiro, também gerou alguns hits como "Cartoon Heroes", "Around The World" e "We Belong To The Sea". Em 2001, no Festival da Eurovisão desse ano em Copenhaga, os Aqua (acompanhados pelos Safri Duo) foram os convidados especiais, interpretando uma medley dos seus hits, destacando-se alguma linguagem profana por parte Lene Nystrom.
Nos anos seguintes, a banda fez um hiato. Num rasgo à la Fleetwood Mac, em 2001 Lene Nystrom casou-se com Soren Rasted e os dois mudaram-se para Londres onde tiveram dois filhos (a união durou até 2017). Em 2003, Lene lançou o álbum a solo "Play With Me", do qual o single "It's Your Duty" teve alguma rotação no Sol Música e na Rádio Cidade. Por altura dos MTV Europe Music Awards em 2006 em Copenhaga, vi num programa da MTV que René Dif era então o dono da discoteca mais chique da capital dinamarquesa.
Os Aqua em 2016
Por fim em 2009, os Aqua reuniram-se para promover um álbum best of com o single inédito "Back To The 80's" e desde então têm actuado ao vivo e lançado música intermitentemente, com o terceiro álbum de originais "Megalomania" a sair em 2011. Desde 2016, os Aqua têm actuado como trio depois da saída de Claus Norreen.
Entretanto, "Barbie Girl" manteve-se um clássico incontornável. Eventualmente a Mattel até utilizou variações do tema (obviamente com outra letra) em algumas suas campanhas da Barbie e multiplicaram-se várias versões por parte de nomes tão díspares como Faith No More, Kelly Key e Ludacris. Recordo-me também, ainda nos anos 90, de passar um videoclip no Sol Música, de um cantor nórdico, cujo nome não recordo, a cantar uma versão em estilo de bossa nova.
E claro, foi actualmente samplado para um dos temas da banda sonora do filme da Barbie, "Barbie World" de Nicki Minaj e Ice Spice que, ao creditar os Aqua, trouxe-os de novo para os tops.
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