Os reality shows já existiam antes mas na viragem do século, esses produtos televisivos atingiram outro nível ao quebrar de vez com a barreira mitológica que existia entre as pessoas do mundo da televisão e os cidadãos comuns. Tornou-se cada vez mais fácil para um cidadão anónimo tornar-se um nome e um rosto reconhecido por toda a população pelo simples facto de aparecer num programa de televisão e onde nem sequer precisava necessariamente de ter um determinado talento.
Em muitos países, como Portugal, essa barreira foi quebrada com a sua respectiva edição nacional do "Big Brother" ou afins (como "Loft Story" em França). Porém nos Estados Unidos, o programa que é considerado como a primeira grande referência dos reality shows no século XXI foi "Survivor", quando no ano 2000 o seu sucesso ofuscou a primeira edição americana do "Big Brother", estreada na mesma altura.
O conceito do "Survivor" foi criado em 1992 pelo britânico Charlie Parsons para tentativamente ser vendido a um canal britânico. Porém, a primeira edição da franchise que se realizou foi na Suécia em 1997 com o título "Expedition Robinson". Isto pois se o "Big Brother" remetia para a obra "1984" de George Orwell, "Survivor" fazia lembrar "Robinson Crusoe" de Daniel DeFoe já que a premissa do programa era a de ver desconhecidos a sobreviver num lugar selvagem e inóspito algures no mundo, como Robinson Crusoe.
Embora a estrutura do programa tenha tido várias variantes conforme o local, o país que produzia e a temporada, a principal estrutura é esta: os concorrentes são divididos em duas ou três tribos e em locais separados (como por exemplo ilhas diferentes) onde têm de construir um abrigo com os poucos recursos que dispõem e alimentar-se daquilo que possa haver de comestível no local. Além dos parcos meios fornecidos pela produção, cada concorrente tem direito a levar um objecto "de luxo", para de certo modo facilitar a sua estadia no local. A cada semana há um desafio onde as tribos lutam por uma recompensa (como comida, ferramentas ou produtos de higiene) e outro desafio em que lutam pela imunidade. Os elementos da tribo que perder este desafio terão de votar um deles para ser expulso do jogo. Quando restarem um determinado número de concorrentes (geralmente dez), estes formarão uma única tribo e a partir daí os desafios de recompensa e de imunidade serão a nível individual. No final, o vencedor é escolhido pelos concorrentes eliminados.
A franchise, quer como "Survivor" quer como "Expedition Robinson", já foi vendida para mais de 40 países desde 1997. Em alguns países, como Espanha e Itália, houve edições com celebridades. A franchise continua em exibição em vários países como Dinamarca, França, Holanda, Roménia, Eslovénia e Estados Unidos, onde já vai na 33.ª (!) edição.
logótipo da edição portuguesa |
Em Portugal, houve apenas uma edição do "Survivor", filmada no Panamá durante 39 dias no Verão de 2001, tendo estreado na TVI a 6 de Outubro, com o último episódio a ser transmitido a 30 de Dezembro. O programa teve apresentação de Paulo Salvador, com cada episódio a ser transmitido aos sábados à noite, além de pequenos blocos conduzidos por Teresa Guilherme ao longo da semana.
No entanto, apesar de não ter tido fracas audiências (ou não estivéssemos em pleno boom do primetime da TVI), a única edição portuguesa do "Survivor" passou algo despercebida e parece caída no esquecimento geral. Para tal, haverá sobretudo quatro explicações: a estreia na mesma altura do Big Brother 3 e de várias telenovelas na TVI que eclipsaram a estreia do "Survivor", a falta de interactividade com o público já que o programa estava previamente gravado e as expulsões dependiam somente dos concorrentes, não ter havido nenhum momento icónico que tivesse ficado para a posterioridade (como o pontapé do Marco no "Big Brother", o calvário parental de Margarida em "O Bar Da TV" ou a pancadaria sobre rodas entre Gisela e Sandra no "Masterplan") e talvez até ao facto de os nossos Survivors nacionais terem optado por jogar limpo em detrimento de intrigas, alianças ou manipulações (que fizeram parte do sucesso da primeira versão americana, que foi ganha pelo concorrente considerado como o vilão).
Foi muito difícil conseguir informação na internet sobre o "Survivor" português, pelo que os principais recursos que usei para este texto são a minha memória e o já inevitável livro "Isso Agora Não Interessa Nada" de Teresa Guilherme.
- Foram dezasseis os concorrentes, oito homens (António, Fred, Luís, Miguel, Paulo, Pedro, Ricardo e Roberto) e oito mulheres (Aida, Ana Luísa, Ana Marta, Andreia, Carla, Catarina, Miriam e Sofia).
Não soube as idades, profissões e localidades de todos, mas lembro-me que Andreia era a concorrente mais nova com 19 anos e Miguel e Roberto já estavam na casa dos quarenta. Eram de vários pontos do país e havia um concorrente açoreano, mas não sei qual.
- Numa primeira fase, os concorrentes foram divididos em duas tribos: Ana Marta, António, Carla, Catarina, Fred, Miguel, Paulo e Sofia formaram a tribo Sikui (que quer dizer "pássaro" no idioma indígena local), simbolizada pela cor laranja e Aida, Ana Luísa, Andreia, Luís, Miriam, Pedro, Ricardo e Roberto a tribo Ua ("peixe"), simbolizada pela cor amarela.
- Catarina foi a primeira concorrente a ser expulsa da ilha, sendo notória a sua falta de adaptação à ilha. Andreia foi a primeiro expulsa da tribo Ua. Ana Marta, Roberto, Sofia e Luís foram os outros concorrentes expulsos antes da fusão das tribos.
- Nos últimos desafios antes da fusão, cada tribo elegeu um membro para jogar com a outra tribo (não podendo ser eliminado). Ana Luísa foi escolhida para competir com os Sikui e Carla com os Ua.
- Com a fusão tribal, os dez concorrentes restantes passaram a formar tribo Baluti ("onda"), com a cor verde. Mesmo antes da reunião, Fred adoeceu e foi impedido pelos médicos de continuar no concurso. Em seu lugar, Sofia, que tinha sido a última concorrente Sikui eliminada, regressou ao jogo, mas ela não pareceu muito satisfeita com isso e foi eliminada por unanimidade na primeira votação da tribo Baluti. Sofia viria a participar no "Fear Factor", no mesmo episódio onde participaram uns então pouco conhecidos Cifrão e Gustavo Santos.
- Recordo-me que uma prova de recompensa, quando só restavam seis ou sete concorrentes, que consistia em eles se verem ao espelho pela primeira vez e calcular quanto peso tinham perdido desde que tinham chegado à ilha, ganhando aquele que se aproximasse mais da diferença perdida. No entanto, essa prova foi ganha por Aida que calculou correctamente que tinha...engordado um quilo!
- Mas foi Carla que ganhou aquela que sem dúvida foi a melhor recompensa do concurso que foi uma noite numa espécie de spa a céu aberto com um buffet de saladas e frutas. Para acompanhá-la ela escolheu Pedro.
- Aliás, tais eram as privações no local, que também me recordo dos membros da tribo Sikui quase a chorar de alegria ao descobrirem que por entre as recompensas que tinham ganho após um desafio, além de um cesto carregado de frutas que não existiam na ilha, estavam vários pacotes de sumo Compal!
Segundo Teresa Guilherme, não foram só os concorrentes que passaram por muitas privações e dificuldades no Panamá. Também a equipa de produção e de filmagem sofreu bem na pele os tormentos das intempéries e dos mosquitos.
"Estávamos separados por um mar de correntes furiosas, ondas de três andares e tudo envolto num assustador tom a atirar para um cinza muito escuro. E isto porquê? Porque durante os dois meses que estivemos no Panamá, todos os dias chovia muito, muitíssimo, a potes. (...)
Mas esta molha diária era uma gota de água comparada com os ataques das hordas de mosquitos. (...)
Claro que (...) usámos um repelente contra a tal bicharada, como se estivéssemos a acampar civilizadamente no parque de campismo de uma albufeirita qualquer.
E ao cair da tarde, eles atacaram. Em menos de três minutos, e por mais que os enxotássemos freneticamente, fomos devorados. E lá passámos a ter mais uma ocupação diária: coçar as centenas de mordidelas que se transformavam em babas gigantescas, (...).
Não fosse o médico da equipa que nos encharcou de anti-histamínicos, todos teríamos hoje as pernas e o resto do corpo ainda mais marcada do que temos."
Além disso, o regresso a Portugal foi complicado para todos. Basta dizer que foi durante o mês de Setembro de 2001.
No último episódio, restaram apenas quatro concorrentes: Pedro, Miriam, Paulo e Ana Luísa. Estes dois últimos foram eliminados após uma última série de desafios, com Pedro e Miriam a tornarem-se os dois finalistas. Os sete últimos concorrentes eliminados regressaram para elegerem o vencedor entre eles os dois e apenas Ana Luísa votou em Miriam, pelo que Pedro Besugo foi o vencedor do (até agora) único "Survivor" português. O artista plástico ganhou o prémio final de 10 mil contos (50 mil euros).
Pelo que me recordo a vitória de Pedro Besugo foi merecida pois tinha sido quase sempre dos melhores nas diversas provas e reunia a simpatia e o consenso dos colegas.
Outro concorrente marcante do Survivor foi António Gamito que anos mais tarde, voltou a ser notícia, desta vez pela sua relação de dois anos com Alexandra Lencastre. Com o seu aspecto neo-hippie de cabelo à surfista, tatuagens, fita na cabeça e atitude zen, o fotógrafo parecia mesmo o concorrente ideal para este tipo de desafio. E portou-se bem, sendo um dos últimos a serem eliminados, se não me engano, foi o último antes do episódio final.
No seu livro "Isso Agora Não Interessa Nada", Teresa Guilherme dedicou-lhe um texto, recordando um episódio do "Survivor". Enquanto outros concorrentes escolheram coisas práticas como o seu objecto de luxo, António escolheu levar a sua prancha de surf. Mas esse objecto de luxo acabou por deixá-lo meio lixado.
Primeiro, porque durante a maior parte do tempo chovia bastante e o mar estava demasiado revolto e havia maiores preocupações para ele e os outros concorrentes como arranjar abrigo e comida, pelo que a prancha ficou arredada durante muito tempo.
"Mas houve um dia em que apareceu uma nesguinha de sol e o Gamito decidiu arrefecer as ideias para dentro de água, e fazer umas habilidades com a sua prancha que deixassem os companheiros de queixo caído. E deixou. O dos companheiros e o dele.
Mal entrou na água atirou-se para cima da prancha mas em vez de deslizar, afundou-se. Bateu violentamente contra a prancha e abriu uma valente lanho no queixo. (…) Em teoria, era um craque do surf de Portugal e arredores e afinal quando chegou aos arredores: crack! Deixou-se bater por uma onda que não tinha mais de 20 centímetros. (…)
E lá tivemos de chamar o pachorrento Dr. Nestor. Chegou de barco com a sua caixa de primeiros socorros e, ali mesmo na praia, sem qualquer tipo de anestesia deu uns valentes pontos no queixo caído do António Gamito - que não deu nem um pio, portando-se como um verdadeiro sobrevivente.
As companheiras da ilha, que suspiravam por eles às escondidas, é que aproveitaram a oportunidade para o encher de mimos. Ele com o queixo à banda e elas pelo beicinho."
O único vídeo do "Survivor" português que encontrei no YouTube foi esta promo da TVI, muito apropriadamente ao som de "Survivor" das Destiny's Child. (Na altura, o grupo passava por tantas mudanças na sua formação que corria a piada nos media que estar no grupo era como estar no "Survivor", nunca se sabia quem iria sair, o que inspirou o tema).
Encontrei também esta promo no Vimeo a anunciar a fase da fusão entre as duas tribos.
Survivor Reality Show - Portugal - 2001 from Paulo Rosa on Vimeo.
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