Salt Lake City, capital do estado americano do Utah, acolheu os 19.ºs Jogos Olímpicos de Inverno entre 8 e 24 de Fevereiro de 2002. Apesar do escândalo do processo da candidatura da cidade, quando em 1998 veio a público que alguns membros do Comité Olímpico Internacional receberam subornos por parte de pessoas pertencentes à comissão de candidatura de Salt Lake City, e dos ataques de 11 de Setembro de 2001 apenas uns meses antes, os Jogos Olímpicos de Inverno de 2002 acabaram mesmo por acontecer. Durante a cerimónia de abertura, foi erguida uma bandeira dos Estados Unidos encontrada nos destroços Ground Zero no 11 de Setembro. No entanto, os Jogos de Salt Lake City decorreram sem problemas de organização e o destaque foi todo para os brilhantes feitos dos atletas.
Uma ideia que se estreou nestes Jogos que continuou nas outras edições subsequentes foi a introdução de uma praça onde se realizaria as cerimónias de entregas de medalhas diante dos fãs, servindo também para concertos e outras actividades culturais.
Atletas americanos transportam uma bandeira americana do Ground Zero na cerimónia de abertura |
2399 atletas de 78 países (Portugal não participou) competiram em quinze modalidades. O skeleton regressou ao programa olímpico após 54 anos. O norueguês Ole Einar Bjorndalen e a croata Janica Kostelic foram as principais estrelas dos jogos: Bjorndalen ganhou todas as quatro provas da competição masculina de biatlo, afirmando-se como o maior atleta de sempre deste desporto; Kostelic, acabada de completar 20 anos, ganhou três medalhas de ouro e uma de prata no esqui alpino. A americana Vonetta Flowers tornou-se a primeira atleta negra a ganhar uma medalha de ouro em Jogos Olímpicos de Inverno, em parceria com Jill Bakken no boblsed feminino. Ao fim de 50 anos, o Canadá alcançou novamente o ouro no hóquei no gelo, por excelência o desporto nacional canadiano, tanto em masculinos como em femininos. A maior controvérsia surgiu na patinagem artística, sobre alegadas pressões e subornos a alguns juízes, que resultou no afastamento de uma juíza francesa e com a medalha de ouro a ser atribuída na prova de pares em ex-aqueo a um par russo e ao par canadiano que originalmente terminara em segundo e que alegadamente teria sido prejudicado pelos juízes.
Apollo Anton Ohno (EUA) |
Um dos desportos mais emocionantes nos Jogos Olímpicos de Inverno de 2002 foi a patinagem de velocidade em pista curta, também conhecida como short track. Ao contrário da patinagem velocidade em pista longa em que só competem dois atletas de cada vez e contra o relógio em vez de um contra o outro, em short track um número de quatro a seis atletas dão voltas a uma pista com pouco mais de cem metros de perímetro ao longo de distância que vão dos 500 aos 1500 metros e é tudo ao molho e fé em Deus. Quedas e despistes são bastante frequentes e qualquer obstrução, empurrão ou colisão resulta na desclassificação dos atletas. Coreia do Sul, China, Canadá e Estados Unidos são as principais potências deste desporto e confirmaram o seu domínio em Salt Lake City.
O pódio dos 1000m femininos: a muito jovem Ko Gi-Hyun e as duas Yang Yang |
O pódio dos 1000m femininos teve a particularidade duas chinesas chamadas Yang Yang: a mais velha, designada por Yang Yang (A) ganhou o ouro e a mais nova, referida como Yang Yang (S), ganhou o bronze. Os media vieram a descobrir que os nomes delas eram iguais em letras romanas mas diferentes em caracteres chineses, embora se pronunciassem exactamente da mesma maneira. A (A) chamava-se "bandeira esvoaçante" e a (S) "sol nascente". Yang Yang (A) também venceu os 500m e foi a primeira atleta da China a ganhar uma medalha de ouro em Jogos Olímpicos de Inverno.
A sul-coreana Ko Gi-Hyun tornou-se aos 15 anos uma das mais jovens campeãs olímpicas de sempre ao vencer os 1500m femininos. Foi Ko quem esteve no pódio das duas Yang Yang nos 1000m.
O público americano teve o seu herói local num atleta que tinha o espectacular nome de Apollo Anton Ohno que venceu os 1500m masculinos, num triunfo controverso. O coreano Kim Dong-Sung tinha sido o primeiro a cortar a meta mas quando ele ia a dar a volta de honra com uma bandeira na mão, descobriu que tinha sido desclassificado pelos juízes por ter obstruído uma passagem de Ohno, a quem foi atribuída a vitória. Furiosos, os adeptos coreanos entupiram as caixas de correio de e-mail do COI e do Comité Olímpicos dos Estados Unidos (mais de 16 mil e-mails!) e angariaram dinheiro para criar um réplica de uma medalha de ouro que foi entregue a Kim quando regressou ao seu país.
Mas a mais extraordinária história da patinagem de short track, senão mesmo de todos os Jogos Olímpicos de Inverno de 2002 foi a dos 1000 metros masculinos, uma história semelhante à da lebre e da tartaruga, que recordou mais uma vez que em solo olímpico como em tudo na vida, não há vencedores antecipados. Aos 28 anos, o australiano Steven Bradbury estava nos seus quartos Jogos Olímpicos, ou seja desde que o short track tinha sido introduzido no programa olímpico em 1992, e em 1994 fizera parte da equipa australiana que ganhou a medalha de bronze na prova de estafeta masculina, a primeira medalha da Austrália em Jogos Olímpicos de Inverno. Como atleta individual porém nunca ganhara uma medalha em Jogos Olímpicos e Campeonatos do Mundo. Além disso desde 1994 que a sua carreira tinha sido minada por lesões. Numa prova em Montreal em 1995, durante uma queda, a lâmina do patim de outro atleta fez-lhe um corte na coxa que foi suturada com 111 pontos. Em 2000, durante uma corrida de treino, Bradbury partiu duas vértebras do pescoço durante uma queda e não só ficou fora de toda a época de 2000-01 como teve de usar uma pescoceira aparafusada ao crânio durante seis semanas.
Steven Bradbury encarava os Jogos de Salt Lake City como o ocaso da sua carreira, longe da velocidade de outros tempos. Tinha financiado a sua preparação a vender patins que ele próprio fabricava na garagem dos seus pais. Mas quando se apresentou para a sua prova de 1000m, uma série de acontecimentos desenrolou-se a seu favor. Nos quartos de final, foi terceiro na sua corrida mas seguiu em frente devido à desclassificação do primeiro classificado por obstrução. Nas semifinais, na esperança que os seus adversários mais credenciados sofressem uma queda ou uma desclassificação, manteve-se na retaguarda da corrida, apurando-se para a final quando dois atletas caíram. Na final, competindo contra Apollo Anton Ohno, o canadiano Mathieu Turcotte, o coreano Ahn Hyun-Soo e o chinês Jiajun Li, Bradbury manteve a mesma estratégia seguindo na cauda da corrida e esperando de novo que o infortúnio dos seus adversários mais rápidos fosse a sua sorte.
E assim aconteceu: na entrada para a última volta, Ohno seguia na frente quando Li tentou ultrapassar-lhe por fora, tocando-lhe no braço. Esse gesto fez Ohno desequilibrar-se, arrastando Li (que seria desclassificado), Ahn e Turcotte na queda. Com todos os outros no chão, um incrédulo Steven Bradbury cruzou a meta em primeiro lugar. Ohno e Turcotte só tiveram tempo de se levantar e conseguir a prata e o bronze. Era a primeira medalha de ouro em Jogos Olímpicos de Inverno para um atleta do Hemisfério Sul. Curiosamente na noite anterior à final, Bradbury tinha oferecido um par de patins feitos por ele a Ohno e pedido para que ele mencionasse a sua marca caso ganhasse o ouro.
Após o seu inesperado triunfo olímpico e subsequente fim de carreira desportiva. Steven Bradbury trabalhou como comentador desportivo para a televisão australiana e orador motivacional, envolveu-se no desporto motorizado e em 2005 publicou a sua autobiografia apropriadamente intitulada "Last Man Standing". A designação de uma vitória inesperada e improvável como "fazer um Bradbury" entrou na gíria australiana.