Mais um excelente texto do Paulo Neto, uma grande contribuição para a "Enciclopédia de Cromos", desta vez sobre uma das mais marcantes telenovelas brasileiras de todos os tempos: Tieta!
"Tieta" é a melhor telenovela de sempre. Sim, eu sei, podem dizer: "Então e (inserir aqui um título de telenovela qualquer) não foi melhor?" Talvez até tenham razão. Mas nenhuma outra telenovela me marcou tanto. E não me recordo de uma outra telenovela que tenha conseguido alcançar tão exemplarmente tudo o que uma boa telenovela deve ter: maravilhosos diálogos, elenco magistral, uma conjugação equilibrada de drama, comédia, romance, sensualidade e crítica social.
Adaptando o romance Tieta do Agreste de Jorge Amado, a telenovela foi exibida pela primeira vez no Brasil em 1989 e em Portugal no ano seguinte. Inicialmente, a Rede Globo pretendia adaptar o romance para uma mini-série mas Betty Faria adquiriu os direitos que tinham sido vendidos à Globo e propôs que se fizesse uma telenovela em que ela fosse a protagonista.
A autoria esteve a cargo do credenciado Aguinaldo Silva em parceria de Ricardo Linhares e Ana Maria Moretzsohn e a realização de Paulo Ubiratan.
Na pequena cidade baiana de Santana do Agreste, Antonieta "Tieta" Esteves (Betty Faria) é uma bela pastora, que apesar da opressão do pai Zé Esteves (Sebastião Vasconcelos) e a inveja da irmã Perpétua (Joana Fomm), vive uma vida alegre e despreocupada e que cedo descobre a sua sensualidade e um gosto pelos prazeres da carne. Por causa disso, acaba por escorraçada pelo pai para fora da cidade, sem que ninguém à excepção de Dona Milu (Miriam Pires), interceda. Vinte anos depois, regressa bem mais madura e vivida, e sobretudo bastante rica, disposta a vingar-se. Todos a julgam viúva de um industrial rico e influente de São Paulo, mas na verdade é que Tieta enveredou pela prostituição subindo a pulso até ser dona de um bordel de luxo, facto que obviamente esconde de todos. Consigo traz Leonora (Lídia Brondi), uma das suas "meninas" que se faz passar por sua enteada.
Aos poucos, Tieta vai-se envolvendo em todos os acontecimentos que ocorrem na cidade e renova amizades antigas como a sua madrasta Tonha (Yoná Magalhães), Carmosina (Arlete Salles) que trabalha nos Correios e lamenta nunca ter casado, Osnar (José Mayer) o rústico mas eficiente sedutor local e Ascânio (Reginaldo Faria), que sonha em trazer o progesso para Santana do Agreste e que se apaixona por Leonora. E sobretudo, Tieta acaba por se envolver com o seu sobrinho Ricardo (Cássio Gabus Mendes) que estuda para ser padre. Mas por este e outros motivos, acaba em forte conflito com Perpétua, que se tornou uma viúva beata. Perpétua julga-se um exemplo de moral e de virtude, mas na verdade é uma mulher mesquinha, gananciosa e cruel. Na cidade, é apenas tolerada para que ela não se meta na vida de quem lhe fizer frente, já que ela se julga sempre no direito de dar ordens a todos, e em surdina chamam-lhe a "tribufu" e o "bacalhau seco". Querendo deitar a mão à fortuna de Tieta, Perpétua fará de tudo para fazer Tieta cair de novo em desgraça. Porém, Tieta sabe do maior segredo de Perpétua: esta guarda numa caixa branca, o sexo embalsamado do seu falecido marido. (Ah, e no fim vem-se a saber que ela também é careca.).
Mas a meio, surge um inimigo ainda maior para Tieta: Arturzinho da Tapitanga (Marcos Paulo), que todos julgavam morto mas que enriqueceu de forma ilícita e pretende instalar uma fábrica altamente poluente em Santana do Agreste.
Além destas, existe mais uma quantidade de personagem inesquecíveis em Santana do Agreste: o Coronel Artur da Tapitanga (Ary Fontoura), homem temido e cruel, que reúne em sua casa um séquito de "rolinhas", ou seja, um grupo de meninas pobres que comprou às famílias em troca de abrigo e educação (leia-se favores sexuais); Dona Milú (Miriam Pires), mãe de Carmosina e dona do bordão "Mistéeeeeerio..."; Timóteo d'Alembert (Paulo Betti), autor do bordão "Nos trinques" e casado com Elisa (Tássia Camargo), filha de Tonha e irmã de Tieta e Perpétua, que vivem uma crise conjugal com momentos trágicos e outros mais divertidos; Dona Amorzinho (Lília Cabral) viúva recatada que se liberta da opressão de Perpétua e da sua repressão sexual ouvindo o programa evangélico do Pastor Hilário com umas cuecas vermelhas; Cinira (Rosane Goffman), beata e lacaia-mor de Perpétua, a quem os pensamentos carnais provocam-lhe tremores incontroláveis; Modesto Pires (Armando Bogus) o dono do curtume, que mantém uma amante "teúda e manteúda", a bela e doce Carol (Luiza Tomé) sob a aparente ignorância da sua esposa Aída (Bete Mendes); o comandante Dário (Flávio Galvão) que procura um tesouro valioso e a sua dedicada esposa Laura (Cláudia Alencar), que se vem a descobrir ser a Mulher De Branco que ataca os homens de noite; o Padre Mariano (Cláudio Correa Castro), cada vez com menos paciência para as provocações de Perpétua; Imaculada (Luciana Braga), a rolinha que fará de tudo para se libertar do jugo do coronel e que sonha que Ricardo é o seu príncipe; as prostitutas da Casa da Luz Vermelha, o bordel local; Gladstone (Paulo José) o caixeiro-viajante que chega para distribuir presentes de Tieta e que conquista Carmosina; Amintas (Roberto Bonfim), o bem-disposto amigo de Osnar e Timóteo que pretende seduzir Amorzinho; Dona Juraci (Ana Lúcia Torres), hipocondríaca e coscuvilheira; Peto (Danton Mello), o filho mais novo de Perpétua que vive um terno primeiro amor com Letícia (Renata Barbosa), a filha de Modesto Pires; Jairo (Elias Gleiser) o condutor da Marinete, a carreira que é a única ligação da cidade ao resto do mundo; a sensual Elisabete/Bêbê (Simone Fragoso), a assistente de Arturzinho que se deixa encantar pelos homens da cidade; e como é óbvio, o lendário Bafo de Bode (Benvindo Sequeira), o bêbedo local e o único que se atreve dizer em público o que todos pensam mas não se atrevem a dizer, sobretudo insultos a Perpétua. Enfim, toda uma galeria de personagens fabulosas, todas elas magistralmente interpretadas. Para muitos destes actores, creio que foram os seus melhores papéis da carreira.
Na altura, além de tudo isto, também o facto de "Tieta" ter um conteúdo sexual mais puxado para uma telenovela também foi marcante, tanto no Brasil como em Portugal, uma vez que ambos os países atravessavam uma renovação de mentalidades face à sexualidade. Foram abordado assuntos como o incesto, prostituição, infidelidade conjugal, pedofilia e relações poliamorosas (Laura aceita que Dário se envolva com a arqueóloga Silvana). Creio que antes das televisões privadas, nenhum produto televisivo exibido em Portugal foi tão longe, pelo menos em horário nobre.
Mas esses assuntos não eram abordados de maneira de gratuita, até porque serviam para ilustrar a mensagem da novela: os pecados da carne são os mais fáceis de condenar mas existem outros bem mais negros, como os da ganância e da hipocrisia. E tanto portugueses como brasileiros puderam-se identificar no microcosmos de Santana de Agreste, onde se atacam alguns em nome da moral, dos bons costumes e da religião mas que se protegem outros com pecados mais condenáveis, pois ambos os povos estavam a libertar-se progessivamente dessa mentalidade, se bem que alguns resquícios ainda se mantenham.
De referir ainda a banda sonora que deixou canções na boca de toda a gente como "No Rancho Fundo" de Chitãozinho & Xororó e o tema-título do genérico interpretado por Luiz Caldas, e Isadora Ribeiro, a modelo que aparecia em todo o seu esplendor no genérico e que no último episódio surge como a nova "teúda e manteúda" de Modesto Pires. Aliás, Isadora seria um dos raros casos de um salto de modelo de genérico de telenovela para uma carreira de actriz. Vimo-la por exemplo em "Pedra Sobre Pedra" e "Vidas Cruzadas".
Para resumir e concluír, citando Timóteo D'Alembert, "Tieta" foi uma telenovela "nos trinques"!