por Paulo Neto
Em 2014, o David Martins tinha criado aqui um artigo no blogue ao descobrir um programa da RTP dos anos 80 intitulado "Conheces A Tua Terra?" em que a sua cidade de Olhão era uma das localidades por onde o dito programa tinha passado, ainda que a informação fosse escassa.
Até que este ano, o site dos arquivos da RTP disponibilizou o programa, originalmente transmitido na RTP 1 aos Sábados de manhã entre 21 de Dezembro de 1985 e 22 de Março de 1986. Confesso que não me recordava nada do programa mas ao ver nessa site achei bastante interessante na forma como encapsulou um Portugal dos anos 80 onde as distâncias entre as diferentes regiões eram maiores que actualmente e que guardava muitos tesouros turísticos que a televisão tinha abordado pouco até então. Além de que viajar pelo país naquele tempo sem telemóveis, com menos vias de comunicação e ainda sendo possível fazer campismo selvagem em algumas zonas deveria ser uma autêntica aventura.
"Conheces A Tua Terra?", da autoria de Santos Careto, consistia em acompanhar as viagens de um grupo de cinco jovens lisboetas - um rapaz, Fausto, e quatro raparigas, Isabel, Paula, Tina e Xana - mais um cão, o pastor-alemão Barsuk por várias localidades do país, sendo que em cada uma delas, encontram outros jovens que lhes mostram os ex-libris locais e ensinam-lhes sobre a história e a cultura da sua terra, havendo sempre um contacto cordial entre os jovens e as pessoas de gerações mais idosas.
O programa não tinha uma componente ficcional à parte o início do primeiro episódio, onde Fausto conhece Tina, enquanto joga à bola e inadvertidamente atinge-a com uma bolada. Mas após o percalço, os dois engraçam um com o outro, passam de se tratarem por você a tratarem-se por tu e durante uma conversa a propósito de Miguel Torga, Fausto sugere que os dois façam uma viagem nas férias de Verão que se avizinham a descobrir alguns recantos não muito conhecidos de Portugal. A rapariga hesita, não sabendo se os pais a deixam ir, a não ser que os acompanhe uma amiga, e o seu cão Barsuk também terá de ir. Por fim, os dois acabam por partir juntamente com o cão e as outras três raparigas, Isabel, Paula e Xana.
Os cinco protagonistas eram apenas referidos pelos seus nomes, sem sequer indicarem os seus apelidos, mas o site "Brinca Brincando" descobriu que a Isabel era a actriz Isabel Simões que entrou em várias séries e telenovelas e o Fausto era Fausto Matias, bailarino e coreógrafo, que apareceu em outros programas como "Cacau da Ribeira". Deduzo que a Paula também estava ligada à dança, já que, juntamente com Fausto e Isabel, participou em alguns números de dança, como por exemplo no primeiro episódio ao som "Sisters Are Doing It For Themselves" dos Eurythmics e Aretha Franklin.
No final de cada episódio, instalados nas suas tendas, os cinco jovens combinavam entre si qual o próximo destino da viagem e um deles quebrava o "fourth wall" para dizer aos telespectadores onde tinham decidido ir a seguir.
Depois de atravessar o Tejo de barco até ao Barreiro, o grupo vai de comboio até Alcácer do Sal. Logo na estação encontram dois jovens alcacerenses que lhes indicam o caminho até ao castelo e vão explicando mais sobre a terra no sempre delicioso sotaque alentejano. Visitam também a Igreja dos Mártires e aprendem a jogar ao chinquilhão e à malha. No castelo, deparam com uma bela vista do vale do Sado.
No segundo episódio, o grupo e os guias locais vão até às salinas onde encontram um jovem que lá trabalha e que lhes explica como funcionam e o traje típico de trabalhador das salinas e que depois os acompanha numa visita pela vila do Torrão e numa subida ao Monte da Tumba para verem as escavações arqueológicas. No Centro de Dia de Alcácer do Sal, onde os idosos se distraem a jogar ao dominó ou a fazer malha e cestos, enquanto se vai cantando à moda alentejana e uma senhora ensina a receita para fazer pinhoadas. Para terminar, uma actuação do rancho folclórico local. O grupo decide rumar ao Algarve e opta por Monchique como seu novo destino.
Depois de uma boleia de carroça, chegados até Monchique, o grupo encontra mais um jovem local, João, que os apresenta a mais três amigos, Paula, Rui e Lena, e os quatro tornam-se os guias dos lisboetas pela terra. Visitam a Igreja Matriz e depois uma adega onde se faz aguardente de medronho. Num restaurante, eles provam alguns pratos típicos como a assadura de porco e a morcela com arroz e assistem a um cantar à desgarrada.
O segundo episódio em Monchique começa com vários planos da rua da localidade e com uma, digamos, criativa encenação de um grupo teatro local. O grupo e os guias monchiquenses encontram o senhor Jacinto que lhes explica como funcionava o Pisão, um engenho hidráulico para lavar as lãs. Depois de um terno momento de brincadeira entre Tina e Barsuk, tempo para visitar o senhor Virgílio, um marceneiro que explica como se fazem as cadeiras de tesoura. A próxima paragem é nas termas das Caldas de Monchique, onde todos apreciam a paisagem e reflectem sobre a importância das águas termais (que já os romanos sabiam dos seus benefícios) e sobre a poluição das águas. Para terminar, mais uma actuação de um rancho folclórico e o grupo, decidido a ir à praia já que estão no Algarve, escolhe por rumar à ilha da Armona em Olhão.
Por razões óbvias, impõe-se que o David Martins dedique um futuro cromo a estes dois episódios, para dar a sua visão de autóctone sobre o que aqui foi mostrado.
O grupo apanha a boleia até Olhão na carripana descapotável de João Bento, que será um dos seus três guias olhanenses. Enquanto vagueiam pelas labirínticas ruas da parte da velha da cidade, os guias explicam que Olhão ganhou o seu nome devido a um grande olho de água que havia na zona e a partir do século XVII foi ganhando mais independência face à confraria de Faro. (E foi precisamente em 1985, o ano em que a série foi filmada que Olhão foi elevada a cidade - curiosamente o mesmo ano que Torres Novas!) É também exaltada a histórica bravura dos olhanenses, que chegaram a América e a África nos seus périplos piscatórias e se bateu para resistir contra os franceses durante as invasões napoleónicas. Visitam a capela-mor e depois seguem-se imagens de barcos no porto. O primeiro episódio de Olhão termina com mais um número de dança ao som "Take Me To Heaven" de Sylvester, para indiferença dos trolhas ali perto que continuam o seu trabalho, e com um refrescante banho numa piscina.
No segundo episódio em Olhão, alfacinhas e olhanenses passam pelo Cinema-Teatro e pelo mercado, onde não falta uma Ti Maria a vender o típico litão e Isabel aproveita a presença de um amolador para amolar uma tesoura. Numa praça faz-se aeromodelismo e manobras com carros telecomandados e crianças brincam ao pião, com papagaios de papel e um jogo que parece ser uma variante do basebol. Com uma Paula muito animada na proa, o grupo segue de barco até à ilha da Armona. Depois de um banho, aprendem como se faz a apanha da ameijoa. Para terminar, mais uma actuação de um rancho f...Não, antes uma almoçarada com caldeirada de peixe e a decisão de prosseguir viagem para Castro Marim
Chegados à estação de comboios de Castro Marim, o grupo encontra duas guias castromarinenses, a Céu e a Manuela, que lhes indicam o parque de campismo da Praia Verde. Encontram mais dois jovens locais que lhes mostram os acompanham até à praia, onde o Barsuk vai-se refrescar. Visitam depois o castelo onde decorrem escavações arqueológicas. A professora Ana Arruda explica as origens do castelo, que ao que tudo indicam, remontam até à idade do bronze. Já a fortaleza Afonsina data do século XIII, mandada construir por D. Afonso III. O primeiro episódio em Castro Marim termina com a inevitável actuação de um rancho folclórico com os lisboetas e os locais numa roda do corridinho.
Na visita à reserva natural, o Sr. José Luís fala-lhes sobre as espécies de fauna e flora que por lá habitam e denuncia ocorrências de caça ilegal na zona. A próxima paragem é nas salinas locais, onde Xana parece fascinada pelos montes de sal aí extraídos. No Azinhal, conversam uma senhora a fazer renda de bilros, assim como o Sr. Salvador em Odeleite que faz cestos. Para terminar, não um rancho folclórico mas sim o ensaio da banda filarmónica local.
Episódio 9 - Juromenha (concelho do Alandroal)
Cansadíssimos após andarem dezasseis quilómetros do Alandroal à Juromenha, o grupo encontra dois rapazes que lhes revelam que vai haver lá festa nesse dia. Visitam o castelo onde um senhor explica a importância que teve em várias batalhas, como a das Linhas de Elvas e salienta o paradoxo da vila, apesar de pertencer ao concelho do Alandroal, eclesiasticamente pertencer a Elvas e judicialmente a Vila Viçosa. O grupo almoça com os locais com uma caldeirada de peixe pescado no Guadiana, que termina com o senhor Augusto a recitar um poema sobre Juromenha, lamentando o declínio da terra. Segue-se mais um número de dança, com Fausto, Isabel, Paula e Xana vestidos de homens/mulheres das cavernas ao som de "Tarzan Boy" dos Baltimora, que vem-se a saber que era um sonho de Fausto. Por fim, surprise, surprise, uma actuação do rancho folclórico local. (Atenção, não tenho nada contra ranchos folclóricos, até porque foi através de um que as duas pessoas responsáveis pela minha existência começaram a namorar.)
Ao comprar umas mantas a dois vendedores vindos de Minde que vão a caminho da feira de Borba, o grupo decide que vai ser esse o seu próximo destino da viagem.
Episódio 10 - Minde (concelho de Alcanena)
Aproveitando a boleia do vendedor de mantas, o grupo chega a Minde e encontram dois jovens locais, Henrique e Dalila que vão ser os guias. Estes contam-lhes que a zona por onde passam é uma lagoa de Inverno devido às chuvas e à impermeabilidade dos solos que cobrem todo o terreno e que de Verão é uma mata. À entrada de uma gruta, o Sr. Crispim fala-lhes sobre a exploração geológica no polje de Minde e depois encontram o Sr. João Alves que lhe fala sobre a sua vida de pastor. Ao entrarem na zona do Eiteiro, Dalila explica que os pedregulhos antigos que encontram pelas ruas serviram como suporte na construção das casas. A próxima passagem é no coreto local, onde os lisboetas observam os painéis de azulejos alusivo à tecelagem local e a fachada da Casa Açores, seguindo-se passagens pela casa onde nasceu o pintor Alfredo Roque Gameiro e a igreja da Nossa Senhora da Assunção. Segue-se uma conversa com a D. Maria Amélia, que durante anos a fio foi a parteira local que fala sobre a sua experiência nesse ofício e os baptizados de antigamente (e no seu relato ela menciona Torres Novas!). Depois os jovens observam dois tipos de tecelagem em dois teares diferentes, um manual e outro mecânico. Por fim, uma nota gastronómica com uma senhora a explicar como se fazem as roquinhas a.k.a. coscorões, um daqueles fritos habituais nas mesas natalícias. No acampamento, os cinco jovens decidem seguir para a Mata de Margaraça. Mas vamos voltar ao episódio de Minde daqui a pouco…
Episódio 11 - Mata da Margaraça (concelho de Arganil)
Este é o único episódio sem um jovem guia local a conduzir o grupo de lisboetas. Assim que os jovens montam a tenda na Relva Velha, são recebidos pelo Sr. Adelino que lhes oferece uma broa e lhes conta sobre a história da Mata da Margaraça, bem como a sua fauna e flora. Os cinco jovens e Barsuk vão se embrenhando pela mata, admirando as árvores e as plantas e convivendo de perto com alguma da fauna (incluindo um rato morto?). Chegados à estação meteorológica, observam um jovem, António, a manobrar os aparelhos que medem a temperatura, o vento e a humidade da mata. Depois de imagens de uma procissão e das ruas da aldeia, o grupo vão até uma loja onde se vendem colheres de pau e, curiosos em saber como elas são feitas, visitam um artesão que lhes mostra todas as etapas do processo, desde o corte de um tronco de árvore com uma serra eléctrica ao produto final. Por fim, a convite do Sr. Adelino, os jovens assistem a uma guitarra e onde uns dos senhores se afoita a puxar Tina para um pé de dança. O próximo destino, Sortelha, é escolhido ao acaso no mapa.
Episódios 12 e 13 - Sortelha (concelho do Sabugal)
Enquanto sobem até às muralhas, Fausto lê uma descrição de Hipólito Raposo sobre Sortelha. Convenientemente sentados à entrada do castelo estão os três jovens guias locais, Fátima, Luís e Zé Carlos. O nome de Sortelha deve-se à forma anelar da muralha e antes de 1855, chamava-se Sortília. Tina descobre uma fonte romana que se chama a fonte de mergulho que tem uma porta secreta. No alto do castelo fica a igreja matriz e próximo dali uma sepultura romana onde Paula se afoita a lá deitar. Depois é tempo de ir ao encontro das gentes da população local, como o Sr. António Maria conta uma lenda religiosa e uma queijeira que lhes ensina a fazer o queijo da Serra (pré-ASAE). Uma viagem de burro leva o grupo até Dirão Da Rua onde um grupo de mulheres contra a lenda de São Cornélio, terminando numa cantoria e roda de dança.
O segundo episódio em Sortelha começa com os jovens e os guias vão até ao castelo e depois ao monumento natural da Cabeça da Velha (o nome diz tudo). Pelo caminho encontram Sra. Adélia que leva papas de milhos aos homens que malham o centeio. E depois de uma demonstração dos jogos da malha e da moeda, a visita termina, claro, com um rancho folclórico. Antes do regresso a Lisboa, tempo para mais uma número da dança, este mais improvisado (desta vez não consegui identificar a canção). Chegados a Lisboa, os cinco jovens despedem-se ficando no ar a hipótese de uma nova viagem no ano seguinte. Uma vez que o programa não foi até ao Norte do país, calculo que se tivesse havido uma segunda temporada, subir-se-ia até lá.
A música de género parecia ser uma tema de música tradicional portuguesa mas afinal era de origem estrangeira: "Hocus Pocus" tema de 1981 do guitarrista britânico Gordon Giltrap.
E agora, uma surpresa. Eu consegui descobrir Henrique Lobo, um dos jovens guias do episódio de Minde, no Facebook (onde temos dois amigos em comum) e aproveitei para lhe colocar algumas perguntas às quais ele respondeu e ao qual muito agradeço!
Dalila e Henrique, os jovens guias do episódio de Minde |
Como é que o Henrique e a Dalila foram escolhidos para entrar no programa?
Se bem me lembro fui dos escolhidos por ser amigo de um dos contactos da RTP. A Dalila foi escolhida quase ao acaso, era para ser uma amiga minha, mas como foi gravado em Agosto ela não estava, e a Dalila estava.
Quanto tempo é que andaram lá a gravar em Minde?
A duração de gravação foi de três dias (das 8 da manhã até cerca das 18/19 horas). Foi gravado nos dias 16, 17 e 18 de Agosto [de 1985].
Que tal eram os jovens lisboetas? Eram simpáticos?
Eram cinco estrelas, super simpáticos, nada a apontar.
Como é que foi para as gentes de Minde ter a televisão lá a filmar?
Em Agosto, naquela época, Minde estava na época alta de férias, a população da terra estava reduzida a menos de metade, mas a malta que cá estava recebeu bem a equipa da RTP.
Como é que foi depois ver o programa na televisão?
O episódio só passou no ano seguinte em Janeiro [na verdade foi a 22 de Fevereiro]. Foi giro ver o trabalho de três dias em pouco mais de vinte minutos. Na altura em que passou, ainda havia poucos videogravadores VHS, foi difícil conseguir uma cópia.
E ao rever agora, como foi olhar para trás para esses tempos?
Rever agora foi mais intenso que naquela época. Dou hoje mais valor agora do que na altura.