Hoje vamos ter um cromo 3 em 1 em que analisamos três temas que foram editados há trinta anos e que desde então têm feito sucesso nas pistas de dança por esse mundo fora. Os três temas têm em comum duas coisas: primeiro, cada qual foi um tema percursor de uma subvertente da música house e segundo, havia uma onde de mistério quanto à dona da voz feminina ouvida em cada um deles.
Mas primeiro, um pouco de história. A house é um subgénero da música electrónica de dança caracterizada pelas batidas repetitivas 4/4, ritmos providenciados por caixas de ritmo e pratos de choque e linhas de baixo de sintetizador. É considerado um género que evoluiu a partir do disco-sound, mas com uma configuração mais electrónica e minimalista. Os primeiros registos de produção de temas house terão nascido nos circuitos de discotecas de Chicago no início dos anos 80, mas foi a partir da segunda metade da década que o género chegou ao público em geral, quer através do sucesso de temas produzidos pelos principais DJs e produtores, quer através da sua influência no repertório de artistas como Madonna e Janet Jackson.
"Ride On Time" Black Box
A Itália sempre foi um país que deixava o seu cunho particular em todos os géneros de música de dança (como o italo-disco e o italo-dance), pelo que o italo-house foi uma inevitabilidade, conferindo ao género um travo de ritmos latinos e de acordes de piano electrónico. Um dos principais nomes ligados ao italo-house é Daniele Davoli que após anos a trabalhar como DJ e produtor, estabeleceu como seu projecto prioritário o grupo Black Box, em parceria com Valerio Semplici e Mirko Limoni. O primeiro tema produzido pelo trio foi "Ride On Time", baseado no tema disco de 1980, "Love Sensation" de Loleatta Holloway. O título era uma corruptela de um dos versos da canção "because you're right on time...". A dar a cara pelo tema no videoclip e nas actuações em televisão, estava uma ex-namorada de Davoli, a modelo francesa Katrine Quinol, cuja beleza era de tal forma deslumbrante que fazia o facto de ela não saber cantar, falar inglês ou sequer ser muito exímia a fazer playback parecer de somenos importância para o público.
Quem achou isso de muita importância foi Loleatta Holloway e o compositor da canção original Dan Hartman, que processaram a banda pelo uso não-autorizado dos samples de "Love Sensation". Enquanto o processo estava a decorrer e para evitar mais prejuízos, uma cantora inglesa foi contratada para gravar novos vocais (de preferência o mais próximo possível dos originais) para "Ride On Time" e essa nova versão substituiu aquela com a voz de Holloway na distribuição comercial do single e nas emissões na rádio. Essa cantora foi nada menos que Heather Small, que anos mais tarde ficaria famosa como a vocalista dos M-People.
Eventualmente os Black Box cederam grande parte dos royalties aos autores do original (reza a lenda que Loleatta Holloway aceitou um casaco de peles como compensação) e a versão com a voz de Holloway viria a ser reactivada e nos dias de hoje, tanto a versão original como aquela com a voz de Small estão disponíveis.
No entanto, nem estes problemas judiciais impediram o sucesso de "Ride On Time" que foi um dos maiores hits de 1989, sendo o single mais vendido do ano no Reino Unido e chegando ao top 5 das tabelas em países como Austrália, Espanha, Finlândia, França, Grécia, Islândia, Irlanda, Noruega, Nova Zelândia, Suécia e Suíça.
Na mesma altura, Davoli, Semplici e Limoni também editaram outras temas nesse ano de 1989 sob outros nomes como Starlight ("Numero Uno") e Mixmasters ("Grand Piano", que também tinha um sample de "Love Sensation") antes de estabelecerem os Black Box como seu projecto principal. O seu primeiro álbum, "Dreamland", surgiu em 1990 contendo outros hits como "Everybody Everybody", "I Don't Want Anybody Else" e "Fantasy", com Katrine Quinol a continuar a dar a cara e o playback pelo projecto e com a cantora Martha Wash (uma das cantoras de "It's Raining Men") a dar a voz. Curiosamente Wash viria também a processar os autores de um outro conhecido tema que por cause de uma modelo a fazer playback da sua voz. A partir de 1993, foi a cantora Charvoni Woodson que deu a cara e a voz pelos singles subsequentes como "Rockin' To The Music" e "Positive Vibration". Embora já não editem material novo desde o final dos anos 90, Daniele Davoli ainda actua ocasionalmente sob o nome de Black Box.
"Pump Up The Jam" Technotronic feat. Felly MC Ya Kid K
Envolvido na música electrónica since o início dos anos 80, o belga Jo Bogaert foi um dos pioneiros do New Beat, uma variante da música techno baseada na Holanda e na Bélgica. Entre os vários projectos que encabeçou, o principal foi os Technotronic, baseado no nome inicial dado a um tema instrumental em que estava a trabalhar. Esse instrumental viria a ser reintitulado como "Pump Up The Jam", quando foi adicionado o rap de um jovem prodígio chamado Manuela Kamosi, sob o nome de MC Ya Kid K. Nascida no Zaire, Kamosi viveu a sua vida entre a Bélgica e os Estados Unidos (nomeadamente em Chicago onde descobriu as cenas hip hop e house locais que a levaram a este projecto). Porém, na altura Kamosi ainda era menor de idade e Bogaert concordou com os pais da jovem que ela ainda era demasiado nova para participar na promoção do single.
Então, tal como fizeram os Black Box, uma modelo franco-congolesa, Felly Kilingi, para dar a cara no videoclip e fazer playback nas actuações ao vivo. Nas primeiras edições do single, Felly foi mesmo creditada como intérprete.
Seja como for, isso pouco importou, já que "Pump Up The Jam" foi um sucesso mundial chegando ao n.º 1 do top em Bélgica, Espanha e Portugal, e n.º 2 na Alemanha, nos Estados Unidos e no Reino Unido, onde foi o oitavo single mais vendido de 1989. Uma cover do conjunto alemão MC Sar & Th Real McCoy obteve algum êxito na Alemanha.
Entretanto, Manuela Kamosi/MC Ya Kid K viria por fim a dar cara, tanto como a voz, e a receber crédito como intérprete no single seguinte, o igualmente bem sucedido "Get Up (Before The Night Is Over)". Os Technotronic viriam a editar singles até ao ano 2000, vários deles com a colaboração de Ya Kid K. Uma nova versão de "Pump Up The Jam" foi editada em 1996.
E os que seguiram a "Caderneta de Cromos" decerto que ainda se recordarão de "Bomba A Compota", a versão que Nuno Markl fez com os líricos em tradução literal para português.
"French Kiss" Lil' Louis
Tal como nos outros dois temas, uma das principais questões de "French Kiss" envolvia a voz de uma mulher, mas desta vez não foi por causa da dona da voz, mas sim os sons emitidos por essa voz.
O DJ Marvin Burns foi um dos nomes pioneiros da cena house de Chicago. Em 1987 começou a editar música sob o pseudónimo de Lil' Louis, mas foi em 1989 que uma composição da sua autoria, de nome "French Kiss". Um épico quasi-instrumental com um batida frenética e repetitiva que precisamente a meio vai ficando cada vez mais e mais lenta, e é então aí que entram os sensuais gemidos de uma voz feminina (que decididamente recebeu bem mais que um beijo à francesa). Assim que a voz atinge o clímax e retoma o fôlego, a batida volta a arrancar e acelerar.
Curiosamente, assim que o tema foi editado em single, foi um sucesso de vendas, mesmo que inicialmente só estivesse disponível a versão de dez minutos (o lado B era outro tema, "Wargames"). E mais curioso ainda, é que "French Kiss" passou nas rádios sem qualquer censura, mesmo com o conteúdo literalmente orgásmico. Até a BBC, que anos antes recusou-se a passar o clássico "Relax" dos Frankie Goes To Hollywood assim que um radalista percebeu o significado da letra, passou a sua própria versão de quatro minutos, com a parte gemida intacta.
E o mais curioso de tudo, o videoclip era composto por imagens brinquedos de corda e de crianças a brincarem, mais uma vez sem alterações à parte dos gemidos. (Imaginem a revolta se fosse hoje...)
Era como se as pessoas se recusassem a acreditar no que acabavam de ouvir.
Entretanto várias versões de "French Kiss" foram disponibilizadas comercialmente, sobretudo uma versão cantada interpretada pela cantora Shawn Christopher.
"French Kiss" foi n.º 1 na Holanda e n.º 2 no Reino Unido, Alemanha, Grécia, Suíça e Espanha.
Quanto à dona da voz dos gemidos, a sua origem nunca foi revelada. A versão mais consensual é a que foi retirada de um filme pornográfico, mas também existem as teses de que são os vocais alterados de Donna Summer em outro clássico do gemidão, "Love To Love You Baby", ou que terá sido a co-compositora do tema, Karlana Johnson, a providenciá-los.
O single seguinte de Lil' Louis, "I Called U (But You Weren't There)", chegou também ao top 20 do Reino Unido em 1990. Nos anos que seguiram, Lil' Louis continuou activo como DJ e produtor. Se segundo diz a Wikipedia, em 2015 perdeu a audição do ouvido esquerdo durante um teste de som em Manchester quando uma buzina de ar comprimido foi tocada mesmo ao pé dele.