Há três anos, escrevi sobre o "Cantigas da Rua" (ler aqui), um dos programas que marcaram fortemente a programação da SIC nos anos 90, graças a um concurso de karaoke ao vivo em praças um pouco por todo o país (mas que imperdoavelmente nunca veio à minha cidade, e até penso eu que nem sequer ao distrito de Santarém, creio que a cidade mais perto da minha onde houve um programa foi Óbidos).
Miguel Ângelo e depois José Figueiras apresentavam o programa onde em cada semana cerca de trinta tugas revezavam-se à razão de três concorrentes por canção num palco montado num sítio chave da cidade para cantar os hits do momento ou clássicos do karaoke. Mas sem dúvida que um dos ingredientes do sucesso do programa era a participação do público em cada cidade, fosse para apoiar um concorrente em particular, fosse pela chance de aparecer na televisão ou simplesmente para viver algo diferente na sua cidade, acolhia em massa a assistir às gravações de cada programa, alguns mesmo colocando-se em cima de candeeiros de rua e outros sítios impensáveis.
E é precisamente sobre a participação do público no "Cantigas de Rua" que Teresa Guilherme escreveu duas crónicas sobre dois episódios do programa no seu livro de 2005 "Isso Agora Não Interessa Nada", que reúne crónicas sobre as suas experiências como produtora de programas de televisão, que será interessante compartilhar.
O primeiro decorreu no ano de estreia do programa em 1996. Conta Teresa Guilherme que os doze programas da primeira série foram filmados em doze dias consecutivos, aqueles que Miguel Ângelo conseguiu disponibilizar da sua preenchidíssima agenda dos Delfins, que estavam então no auge do seu sucesso. Um processo cansativo mas pelo qual todos os envolvidos correram por gosto, como escreve a TG:
"Mal acabávamos de gravar, o palco, as luzes, o carro de exteriores e os trezentos e vinte e cinco mil apetrechos necessários para fazer um programa de televisão eram carregados em camiões, faziam-se à estrada e mudavam de terra.
No dia seguinte, às duas da tarde, lá estava tudo montado noutra praça histórica perto de si, pronto para os ensaios.
Para a nossa equipa foram horas e horas dentro de uma carrinha. Um convívio obrigatório, mas esfuziante e inesquecível. O Miguel Ângelo, habituado às tournées da sua banda, divertia-se a ver o entusiasmo destes «ratinhos» de televisão, habituados à gaiola de estúdio, a curtirem esta saborosa liberdade."
Apenas a final da primeira série foi gravada mais perto do dia da sua exibição em Setembro de 1996.
No entanto, tal foi o sucesso do "Cantigas da Rua", que Emídio Rangel, o célebre director de programas da SIC de então, achou que não se devia deixar para o próximo Verão o que se podia fazer naquele Outono e Inverno e quis uma segunda série do programa imediatamente a seguir à primeira. E foi assim que todos aqueles envolvidos no programa voltaram à estrada, mesmo sob os frios dos últimos meses do ano. Mas mesmo não abençoado pelo sol estival, o esforço continuou a dar os seus frutos, quer em audiências quer na afluência do público às gravações do programa. Como constatou TG:
"O Emídio Rangel tinha razão. Não é só no Verão que os portugueses estão prontos para uma festa ao ar livre. Estivesse o tempo que estivesse, as praças continuavam a rebentar de público. Enregelado mas com o mesmo calor humano."
A final da segunda série de "Cantigas da Rua" iria ter lugar em Dezembro em Lisboa, em frente ao Mosteiro dos Jerónimos, onde tinha sido gravado o primeiro programa. Para tornar a grande final ainda mais grandiosa, vários cantores conhecidos foram convidados a entrar em dueto com os finalistas amadores que cantavam as respectivas canções, que tanto foram cantadas ao longo de todos aqueles programas pelo país fora, como por exemplo Paulo Gonzo, Olavo Bilac, Sara Tavares, Anabela, Dina e Lara Li. Mas a "estrela" nesse dia foi alguém que não tinha sido convidado mas que se fez notar por todos: o São Pedro.
"Estávamos em Dezembro e o Cantigas Da Rua ainda é do tempo em que chovia no Inverno. E choveu!!! Toda a tarde e toda a noite. Mas não pensem que foi um pinguito aqui, outro ali. A água caiu com a mesma força com que os cantores, amadores e profissionais, brilharam naquele palco.
E o público, onde é que estava? No sítio do costume, à volta do palco, aos milhares, só que com alguma dificuldade em bater palmas por causa dos chapéus-de-chuva."
Pode-se dizer que essa finalíssima foi uma autêntica serenata à chuva digna do filme com Gene Kelly.
O outro episódio do "Cantigas de Rua" que Teresa Guilherme recorda em outra crónica, passou-se em Guimarães, onde o impensável aconteceu e por pouco que um dos programa teria sido gravado sem espectadores ao vivo. Um dos programas foi gravado na encosta do castelo de Guimarães e Teresa Guilherme ficou tão fascinada por aquele local, não só pela sua beleza como também pelo facto da sua vastidão proporcionar a formação de uma enchente humana ainda maior do que era costume, que ficou assente que no ano seguinte a grande final do programa seria lá. E mais uma vez, as coisas correram tão bem que ela decidiu que a cidade-berço da nação seria de novo o palco da final no ano seguinte.
Eis aqui um excerto de um dos programas filmados em Guimarães:
Mas dessa vez as coisas foram diferentes. Chegada a Guimarães, Teresa reparou que as pessoas que a cumprimentavam também lhe perguntavam o que ela andava a fazer por lá. Ela telefonou então à SIC para saber se o sistema de promoções ao programa durante as emissões do canal estava a funcionar, ao que lhe foi dito que sim. Mas algo estava errado, pois não tardou a ser evidente que os vimaranenses não sabiam que o programa iria ser gravado naquela noite. Deixemos que Teresa Guilherme conte o final da história:
"Ás 20 horas, ninguém na praça. E eu ansiosa.
Às 20h30. Eu ainda mais ansiosa, e ninguém na praça.
Voltei a telefonar para a SIC. Foram investigar.
Às 21h00, eu quase histérica e na praça...ninguém.
E foi aí que a SIC confirmou os meus piores receios. Não tinha ido nenhuma promoção para o ar, avisando os bravos de Guimarães que queríamos o seu apoio. A partir daí, encharcaram a emissão com rodapés informativos que acabavam com um lancinate «Vá já!!!» (e onde podiam muito bem ter acrescentado: «Antes que a Teresa morra!!!»). E, finalmente, as pessoas começaram a chegar. Devagarinho, lá iam subindo a encosta e já passava das dez da noite, quando começámos a gravação com aquilo que, em gíria de espectáculo, poderíamos chamar de uma encosta composta.
Claro que a televisão tem os seus truques. Nunca se mostrou que, daquela vez, a nossa enchente habitual tinha um caudal fraquinho."
É divertido saber destes episódios por detrás das câmaras e que por detrás do que parece ser uma transmissão irrepreensível de um programa está por vezes uma data de sobressaltos nos bastidores para que chegue aos ecrãs nas melhores condições, não é verdade?
Vídeos bónus:
Excerto de um programa de 1996 gravado no Porto na Avenida dos Aliados
Excerto de um programa em Beja:
Num programa de 1999 em Faro, ouviu-se cantar o fado:
A prestação de Maria da Piedade em Viseu e Guimarães (1999)
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Já nem me lembrava que tinham estado perto de mim, só uns 10km, em Faro :)
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