Em 2001, estava Portugal recém-recuperado da perfect storm da música pimba dos anos anteriores, que passava por uma fase de acalmia, quando surgiu alguém que transpôs limites na música nacional como ninguém ainda o tinha feito.
A história de Casimiro António Serra Afonso, nascido a 25 de Junho de 1965 em Gralhós, concelho de Macedo de Cavaleiros, podia a de ser de mais um português que emigrou para França em busca de melhores condições de vida e, tal como por exemplo Linda de Suza ou Tony Carreira, num desses acasos da vida descobriu o sucesso nas cantorias. Só que a sua história teve uma particularidade inédita: o seu sucesso não se deveu ao seu talento para cantar, mas sim à falta dele.
Mas seguindo a máxima de António Gedeão, o sonho de glória musical comandou a vida de Casimiro Afonso, a que nem o facto assumido de não saber cantar lhe apagou o sonho de um dia gravar um disco e de ganhar a vida como cantor. Por isso, enquanto trabalhava em França como pintor de casas e empregado de limpeza, foi juntando dinheiro para poder gravar um disco. Reza a lenda que assim que juntou a quantia necessária para tal, contactou o cantor Luís Filipe Reis que lhe arranjou condições para gravar, tendo gravado dez temas em apenas quatro horas. E que quatro anos após a dita gravação, um grupo de amigos que viajava por Itália descobriu o disco e colocou as músicas na internet, que assim foram descobertas pela equipa do programa da manhã da Rádio Comercial.
Daí até Casimiro vir-se a actuar, sob o stagename de Zé Cabra, na televisão em programas como o Herman SIC e em concertos onde desafiava a sensibilidade dos tímpanos de quem o ouvia foi um instante. Apoiado pela editora Espacial, regravou alguns dos seus temas antigos e mais alguns inéditos para o seu álbum de estreia "Deixei Tudo Por Ela". E chegados à Páscoa de 2001, já não havia ninguém neste país que não tivesse ouvido a faixa-título nem que a trauteasse, de preferência com tanto desafinanço quanto o original: "Deixei tudo por ela, deixei, deixei./ Deixei tudo por ela, eu sei, eu sei./Deixei a minha vida tão bonita e singela./Deixei tudo o que tinha, deixei tudo por ela."
O sucesso musical de Zé Cabra coincidiu com um período de felicidade pessoal, pois poucos anos antes tinha-se casado com Alcina e sido pai de uma menina de nome Jéssica. Coincidiu também com a época das Queimas da Fitas e das Semanas Académicas por todo o país, com alguns "sortudos" a ter a chance de ver Zé Cabra a actuar ao vivo na sua Semana Académica local e com "Deixei Tudo Por Ela" a ser amplamente tocado nesses eventos. Eu na altura ainda estava a estudar em Coimbra, no meu 3.º ano da licenciatura, e era impossível escapar ao tema durante a Queimas das Fitas de 2001. Até Pedro Miguel Ramos himself, que estava na altura em alta devido ao Big Brother e que foi DJ numa das noites do Queimódromo, incluiu "Deixei Tudo Por Ela" no seu set.
O álbum acabou por vender 40 mil cópias, o que equivaleu a um galardão de disco de platina, e gerou mais um hit-single, "São Lágrimas". E mais uma vez, o povo tuga chilreou: "São láaaaaagrimas! São lágrimas caindo do meu rosto!"
Como não podia deixar de ser, o sucesso de Zé Cabra dividiu opiniões. Uns indignaram-se por se estar a dar tanta atenção e mediatismo a alguém que não tinha jeito nenhum para cantar, tendo o país tanta gente a cantar bem que passava despercebida, considerando o fenómeno como um deplorável número de circo. Outros levaram a situação pelo lado divertido da coisa e solidarizaram-se com o artista e a sua história de underdog, em muitos capítulos semelhante a de tantos outros por esse Portugal fora, para quem a vida não fora branda na sua dureza, que emigrou em busca de uma vida melhor e que agora, contra todas as probabilidades, realizava um sonho e vivia o seu momento de glória. Por entre essas discussões, Casimiro Afonso fez por aproveitar ao máximo esse momento de glória enquanto Zé Cabra, sabendo que para pessoas como ele, um momento assim, por muito fugaz e bizarro que fosse, seria algo raro de acontecer e de valor incalculável.
Zé Cabra editou mais dois discos, "Malas À Porta" em 2002 e "Vou Saltar-te Em Cima" em 2008, para além de um DVD do seu concerto de 2006 no Maxime e participou na curta-metragem "Um Homem" de Laurent Simões. Mesmo sem nunca ter-se aproximado do êxito de "Deixei Tudo Por Ela", Zé Cabra continua a actuar ocasionalmente num desses recantos mais ou menos profundos de Portugal e a ser reconhecido na rua.
Reportagem SIC "Perdidos & Achados" (2010)
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