por Paulo Neto
À primeira vista pode parecer estranho eu estar a falar aqui sobre uma série actualmente em exibição, mas sendo a série que é, faz bastante sentido falar dela aqui na "Enciclopédia de Cromos".
Não é segredo para ninguém que este blogue foi inspirado pelo valiosíssimo trabalho de arqueologia cultural levado a cabo por Nuno Markl entre 2009 e 2012 na "Caderneta de Cromos" da Rádio Comercial relembrando tantas memórias dos anos 70, 80 e 90. Além disso, eu e o David Martins somos grandes admiradores do trabalho de Markl pré e pós-"Caderneta", por isso quando ele anunciou nas redes sociais que um dos seus próximos projectos era uma série da RTP de título "1986" que pretendia capturar o Portugal desse referido ano, ficámos bastante entusiasmados e sabíamos que iria ser algo grandioso. Foi também com grande entusiasmo que fomos recebendo cada informação disponibilizada sobre a série através das redes sociais, desde excertos do guião a imagens de bastidores das filmagens, passando por reflexões de Markl sobre o andamento do projecto. A cada novo detalhe divulgado, eu só pensava "Tenho de ver isto. TENHO. DE. VER. ISTO! JÁ!". A expectativa chegava a ser dolorosa, ainda por cima com os sucessivos adiamentos da estreia.
Mas por fim no passado dia 13 de Março de 2018, o primeiro episódio de "1986" foi para o ar na RTP1 e logo a seguir, os 13 episódios que compõem a série ficaram disponíveis na RTP Play. Não, não vi todos os episódios de enfiada, mas foi a minha primeira experiência de poder aceder a uma série inteira e vê-la na íntegra em poucos dias. E as minhas expectativas quanto à série, embora altas, foram largamente superadas.
Sim, "1986" é uma cápsula do tempo a transbordar de referências e reminiscências dos anos 80. Sim, é a recordação de um Portugal que ainda lambia as profundas feridas do passado mas que olhava para o futuro com um optimismo nunca antes visto. Sim, é um tributo de Nuno Markl às suas paixões cinematográficas, musicais e literárias da sua adolescência que o moldaram enquanto autor. Mas "1986" ainda é mais do que tudo isso.
A trama já é sobejamente conhecida: no início de 1986, quando Mário Soares e Freitas do Amaral avançam para a segunda volta das eleições presidenciais, o país está dividido entre os dois candidatos e o bairro lisboeta de Benfica não é excepção. É aí que vive Tiago (Miguel Moura e Silva), um jovem de 17 anos, apaixonado pelos jogos do Spectrum e fã dos Smiths, filho de Eduardo (Adriano Carvalho), um fervoroso militante comunista que vai ter de engolir o sapo de votar Soares. Como se ser um adolescente órfão de mãe, ouvir os constantes sermões ideológicos do pai, levar caldunços do presunçoso Gonçalo (Henrique Gil) na escola e aturar a obsessão do amigo metaleiro Sérgio (Miguel Partidário) em perder a virgindade bem como o negrume da amiga gótica Patrícia (Eva Fisahn) já não fossem complicações suficientes, Tiago está apaixonado por Marta (Laura Dutra), uma miúda gira e popular que é muito mais do que a betinha que aparenta ser. Tal como ele, Marta carrega sonhos para lá das estrelas. O problema é que este princípio de uma bela amizade (e quiçá algo mais) parece condenado à partida porque o pai de Marta, Fernando (Gustavo Vargas), é acérrimo apoiante de Freitas do Amaral e abomina Mário Soares e o comunismo, entrando em rota de colisão com Eduardo.
Pelo meio, há Alice (Teresa Tavares), a professora de Português da turma de Tiago, que se envolve com Eduardo apesar de ainda estar a ressacar de uma paixão mal resolvida, Maria de Lurdes (Mafalda Santos), a extremosa esposa de Fernando e mãe de Marta prestes a soltar um grito de Ipiranga contra a condição de submissa dona de casa para a qual sente que foi remetida à força, a Dona Conceição (Ana Bola), a sogra de Fernando que adora provocar o genro, a mãe hippie de Patrícia (Anabela Teixeira) que nem sonha que a filha se veste de preto da cabeça aos pés, Zé (Simon Frankel) um professor homossexual que se torna uma espécie de guia espiritual para Marta e Tó (Tiago Garrinhas), o estouvado funcionário do clube de vídeo de Fernando e dono da rádio pirata Boa Onda, que é como que a principal ligação entre o mundo dos adultos e o dos adolescentes.
Por entre turbulências familiares, conflitos políticos, explosões de aeronaves, falsos atentados bombistas, disfarces do Naranjito, discos do "Tarzan Boy", revistas "Gina" e pastilhas Super Gorila, poderão alguma vez Tiago e Marta ficar juntos?
Claro que a série terá as suas falhas e inconseguimentos. Vários espectadores já indicaram certos anacronismos (o mais famoso, o do Sérgio ter uma t-shirt com a capa de álbum dos Iron Maiden de 1993), glitches e inverosimilhanças. Pessoalmente eu achei que o motor da história só arrancou devidamente a partir do quarto episódio e que faltou profundidade a personagens como Fernando e Tó, que quase não saíam da caricatura. Mas nada que ensombre a saborosa experiência que é assistir à série, quase idêntica à de devorar um pacote de "Joaninhas". E para mim, existem quatro ingredientes que tornam "1986" tão delicioso.
Primeiro, a escrita de Nuno Markl, em parceria com a sua irmã Ana Markl e Filipe Homem Fonseca. Os diálogos são deliciosos e altamente "quotable", existe um bom equilíbrio entre as vertentes cómica e trágica da história e mesmo noutro espaço temporal, os apontamentos de humor surreal estão bem inseridos e aborda com franqueza temas intemporais como o fosso entre gerações e os dramas da adolescência. Quem é fã de Nuno Markl, reconhecerá o seu cunho pessoal e até mesmo situações semelhantes àquelas que o próprio já relatou na "Caderneta de Cromos" e em outras ocasiões. Mas também existe aqui um lado da sua escrita com que muitos não estarão familiarizados.
De referir ainda o apoio de consultoria histórica por parte de Joana Stichini Vilela, autora da excelente trilogia olissipográfica "LX-60", "LX-70" e "LX-80"* e a realização de Henrique Oliveira, ele próprio um ícone dos anos 80 como guitarrista dos Táxi .
* Este volume cita o meu artigo sobre as canções das Eleições Presidenciais de 1986 como uma das suas fontes, o que muito me honra.
Segundo, o desempenho do elenco é muito bem conseguido. Os cinco jovens protagonistas foram bem-sucedidos em revelar todas as nuances das suas personagens e em fazer os espectadores identificarem-se com elas. A principal revelação será Eva Fisahn, como a icónica Patrícia: todos os seus timings e expressões são absolutamente certeiros. Não admira que a sua personagem já seja uma "fan favourite".
Do elenco mais adulto, destaco Adriano Carvalho, Teresa Tavares (que estranho vê-la a fazer de professora quando me lembro tão bem dos seus papéis de aluna), Mafalda Santos (adorei a evolução da sua personagem) e Ana Bola (dando o seu twist inconfundível à personagem).
Terceiro, a banda sonora original, concebida por João Só, Nuno Rafael e Hélder Godinho. Os oito temas originais convivem muito bem por entre os vários sucessos eighties (e alguns de outras décadas) que se ouvem na série, sem deixarem de soar também a 2018. Do refrão eufórico de "Electrificados", o tema do genérico interpretado por João Só, Catarina Salinas e Lena D'Água, à invocação Cyndi Lauper-iana de Ana Bacalhau, passando por Samuel Úria a dar uma no cravo dos Supertramp e outra na ferradura dos Iron Maiden. Isto para além de David Fonseca, Miguel Araújo, Márcia, Tatanka e Rita Redshoes.
Quarto, a razão mais pessoal. Durante as filmagens da série, Nuno Markl pediu através das redes sociais que os seus seguidores enviassem fotos suas de circa 1986 para o genérico da série a ser criado por João Pombeiro. Eu enviei uma das minhas fotos de infância de preferidas, datada de 1985 em que o meu eu de 5 anos estava a fazer broas de Todos-Os-Santos com a minha Avó Ana, enquanto por detrás de nós vê-se o quadro com a cabeça do Rato Mickey onde aprendi as escrever as letras.
Claro que tinha esperança que esta fotografia fosse incluída para o genérico, mas com tantos cibernautas a enviar fotografias, estava ciente de que a minha podia não ser uma das eleitas. Por isso, foi com imensa alegria que vi a foto da Avó Ana e o Paulo de 1985 no genérico inicial do primeiro episódio. Fiz logo printscreen e avisei os meus familiares no Facebook, que ficaram comovidos.
A minha Avó Ana faleceu em 2002 e estou profundamente agradecido por ver este nosso momento imortalizado no genérico de "1986".
Para quem já andava por este pequeno rectângulo à beira do Atlântico no dito ano, "1986" será um belo exercício de viagem no tempo e de regresso uma época onde se vivia a outra velocidade e com outra intensidade. Para aqueles que nasceram depois, será uma divertida descoberta de um período tão diferente daqueles que conheceram mas que afinal também é bastante semelhante.
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Vi todos de enfiada, e gostei, mas penso que poderia ter sido mais aprofundada.
ResponderEliminarAchei o "boneco" do Sérgio meio apatetado.
Reparei que no cinema dizia para breve os Goonies, mas que no video clube, já lá andavam cartazes...Isto não era assim, naquele tempo.
O boneco do Pai do Eduardo também exagerado. Parecia sempre com os copos.
Penso que não faz grande sentido, haver uma 2ª temporada, mas era bem vinda, claro.
Por fim, lamento que a banda sonora, seja composta na sua maioria por músicos de hoje.