Tempo para recordar mais uma edição anterior do Festival da Eurovisão, e esta talvez seja a mais histórica de sempre. Isto apesar de na altura não ter granjeado grandes elogios na imprensa por essa Europa fora, com o Diário de Lisboa (que nunca foi muito com a cara do evento) a sentenciar: "E depois do Festival, fica-nos a desoladora impressão de nenhuma das canções ter ficado no ouvido…" Mas agora sabemos que não foi bem assim, pelo menos quanto à canção vencedora…
O Luxemburgo tinha vencido pela segunda vez consecutiva no ano anterior mas como o grão-ducado não quis acolher novamente o certame, pela quarta vez a BBC britânica chamou a si os seus deveres para organizar o Festival quando o país vencedor do ano anterior não tinha vontade ou capacidade de o fazer. Algo que voltará a acontecer este ano com a cidade britânica de Liverpool a acolher o evento na impossibilidade da Ucrânia poder fazê-lo devido à guerra que tem assolado o país.
O 19.º Festival da Eurovisão teve lugar a 6 de Abril de 1974 no Teatro Dome em Brighton, cidade na costa meridional de Inglaterra. Katie Boyle (1926-2018) foi a apresentadora, tal como em 1960, 1963 e 1968. O grupo de bonecos The Wombles foram a atração do número de intervalo. Artur Agostinho fez o comentário para a RTP e Henrique Mendes foi o porta-voz (em francês) dos votos do júri português.
Como o sistema actual dos "douze points" só entraria em vigor no ano seguinte, em 1974 a votação procedeu-se assim: cada país tinha um júri composto por dez elementos com cada um dar o seu voto à sua canção preferida (que não a do próprio país). Este sistema de votação tinha sido utilizado entre 1957 e 1961 e mais tarde entre 1967 e 1970. Pela primeira vez, além da ordem de actuação, a ordem de votação também foi sorteada, mas curiosamente em ambos os casos a Finlândia foi sorteada em primeiro lugar e a Itália em último. Por isso, o quadro de pontuações foi o primeiro a indicar qual era o país a votar. Os postais ilustrados desse ano começavam por mostrar uma imagem de cada país (o Terreiro do Paço por Portugal quando na altura era um imenso parque de estacionamento) e depois imagens dos respectivos artistas nos ensaios ou a posar para as câmaras nas imediações do teatro.
Como é habitual, iremos analisar as canções por ordem inversa à classificação.
Dani (França)
Mas antes disso, há que mencionar a França que deveria competir com a canção "La vie à vint-cinq ans" interpretada por Danièle Graul, mais conhecida simplesmente como Dani, tendo sido sorteada para atuar em 14.º lugar. No entanto, quatro dias antes do dia do Festival, o presidente da França, Georges Pompidou, faleceu inesperadamente e com o país em luto nacional, a televisão francesa retirou-se da competição. O que é pena porque a canção era bastante boa e provavelmente teria um bom resultado. Além de cantora, Dani (1948-2022) também era actriz tendo entrado em dois filmes de François Truffaut: "A Noite Americana" e "Amor Em Fuga". Em 2001, Dani teve um inesperado hit com "Comme Un Boomerang" em dueto com Etienne Daho.
Cindy & Bert (Alemanha)
Nesse ano quatro países repartiram o último lugar, cada qual tendo recebido três pontos.
A Alemanha foi representada pelo casal Jutta "Cindy" Gusenberger e Norbert "Bert" Berger" (1945-2012) com "Die Sommermelodie" ("a melodia de Verão"), onde ao contrário deles próprios na altura, falava de um casal de apaixonados contrariados pelo facto de um deles não ser livre. Cindy e Bert divorciaram-se em 1988 e nesse ano Cindy foi segunda na pré-selecção alemã, e desde então que tem tido uma carreira a solo. (Adoro o nome ultra-alemão do orquestrador: Werner Scharfenberger!)
Piera Martell (Suíça)
A Suíça também se apresentou em alemão com "Mein Ruf nach dir" ("o meu apelo a ti") por Piera Martell (1943-). Após mais algumas participações nas finais nacionais helvéticas, Piera Martell retirou-se da música em 1981.
Anne-Karine Strom (Noruega)
A loiríssima Anne-Karine Strom (1951-) já tinha participado pela Noruega no ano transacto como parte do quarteto The Bendik Singers. Agora regressava a solo, ainda que acompanhada nos coros pelos irmãos Bjorn e Philipp Kruse, os seus anteriores companheiros de grupo. Em Brighton, cantou em inglês "The first day of love". A meu ver, das quatro canções empatadas em último lugar, apenas a da Alemanha e da Suíça mereceriam a cauda da tabela, com as da Noruega e do quarto país a serem nitidamente superiores e injustiçadas. Anne-Karine Strom voltou a representar as cores norueguesas em 1976, mas - infelicidade! - mais uma vez ficou injustamente em último lugar.
Paulo de Carvalho (Portugal)
O quarto país do quarteto dos últimos foi, claro está, Portugal. Mas a canção que nos representou para Portugal ganharia um significado muito maior que a Eurovisão. Paulo de Carvalho (1947-) tornou-se conhecido nos The Sheiks como vocalista e baterista, antes de iniciar a sua carreira a solo em 1969. Competiu nos Festivais da Canção de 1970, 1971 e 1973, até vencer à quarta tentativa em 1974. No Festival da Canção desse ano, houve tripla participação de José Cid a solo ("A Rosa Que Te Dei") e com os Green Windows ("Imagens" e sobretudo, "No Dia Em Que O Rei Fez Anos"), além de nomes como Artur Garcia ("Senhora e Dona da Boina"), Duo Ouro Negro ("Baila Dos Trovadores") e Helena Isabel ("Canção Solidão"). "E Depois Do Adeus" tinha letra de José Niza e música e orquestração de José Calvário e se no Festival passou discretamente, semanas mais tarde cumpriria o seu lugar na História de Portugal. No dia 24 de Abril de 1974, às 22:55, a canção passou na emissão radiofónica dos Emissores Associados de Lisboa. Mas ninguém suspeitava que se tratava de uma senha para as forças armadas se prepararem para aquela que seria a revolução na manhã seguinte que poria fim ao regime do Estado Novo. E depois desse adeus, a liberdade…
A carreira de Paulo de Carvalho continuou a somar grande sucesso até aos dias de hoje, onde pontificam outros grandes temas como "Flor Sem Tempo", "Nini Dos Meus Quinze Anos", "Os Meninos de Huambo" e "Mãe Negra", para além de mais um regresso à Eurovisão em 1977 com Os Amigos.
Carita (Finlândia)
Tal como no ano anterior, a Finlândia foi o primeiro país a atuar. Sentada ao piano, Carita Holmström (1954-) cantou "Keep Me Warm", ficando em 13.º lugar com 4 pontos.
Korni (Jugoslávia)
A Jugoslávia foi representada pelo grupo sérvio Korni. Liderada por Kornelije Kovac (1942-2022), era uma das bandas pioneiras do rock jugoslavo, inclusivamente com alguma notoriedade fora do país. Com Zlatko Pejakovic (1950-) como vocalista principal, os Korni defenderam em Brighton o tema "Moja generacija" ("minha geração"), que no Festival foi apresentado sob o título "Generacija '42". A letra falava daqueles nascidos em 1942, tal como Kovac, durante a ocupação nazi da Sérvia. A canção jugoslava ficou em 12.º lugar com 6 pontos. Ainda nesse ano, a banda terminou, ainda que tenha tido uma breve reunião em 1987.
Marinella (Grécia)
Apesar de alguns cantores gregos já terem participado por outros países (nomeadamente Vicky Leandros que venceu em 1972 pelo Luxemburgo), foi nesse ano que a Grécia participou pela primeira vez no Festival da Eurovisão. Nesta sua estreia, foi representada por Kyriaki Papadopolou, mais conhecida como Marinella (1938-), que cantou "Krasi, thalassa ke t'agori mou" ("Vinho, mar e o meu namorado), um tema como sonoridades inconfundivelmente gregas, ficando em 11.º lugar com 7 pontos. Com a sua carreira iniciada em 1957, Marinella já era uma das cantoras mais populares da Grécia, popularidade que continuou pelas décadas seguintes, tendo mesmo actuado na cerimónia de encerramento dos Jogos Olímpicos de 2004 em Atenas. (E tal como Portugal, mais tarde nesse ano a Grécia também sairia de um regime autoritário, após o fim da junta militar que governava o país desde 1967, a quem chamavam "a ditadura dos coronéis").
Jacques Hustin (Bélgica)
Com dez pontos cada, Espanha e Bélgica repartiram o nono lugar. Pela Bélgica, Jacques Hustin (1940-2009) cantou "Fleur de liberté" (por acaso, seria essa flor um cravo?). Além da música, Hustin também se destacou como pintor, tendo aliás abandonado a carreira de cantor no final dos anos 80 para se dedicar exclusivamente à pintura até ao final da sua vida.
Peret (Espanha)
Já a vizinha Espanha foi representada por Pedro Pubill Calaf, ou simplesmente Peret (1935-2014), com "Canta y se feliz" uma tema em ritmo de rumba. Aliás Peret foi um dos maiores músicos da rumba catalã. Como na altura em que ainda não havia microfones handsfree, para ter mais liberdade nos movimentos enquanto cantava e tocava guitarra ao mesmo tempo, Peret actuou com um microfone preso na gravata. Após um interregno na música onde esteve envolvido num culto evangélico, Peret actuou na cerimónia de encerramento dos Jogos Olímpicos de 1992.
Tina Reynolds (Irlanda)
O sétimo lugar também foi compartido entre dois países, com Irlanda e Israel a receberem onze pontos cada. Pela Irlanda, esteve Tina Reynolds (1949-), de seu verdadeiro nome Philomena Quinn, uma das cantoras mais populares do país nos anos 70, cantando "Cross Your Heart".
Kaveret / Poogy (Israel)
Após a estreia no Festival no ano anterior, Israel participou pela segunda vez com o grupo Kaveret (que competiu sob o nome Poogy), uma das bandas pioneiras do rock israelita. Como na Eurovisão só é permitido um máximo de seis pessoas em palco em cada actuação, seis membros da banda subiram ao palco e o sétimo dirigiu a orquestra. Em Brighton, cantaram "Natati la chiaiai" ("eu dei a minha vida por ela"), que à superfície parece ser sobre um romance falhado, mas a letra continha algumas mensagens políticas, nomeadamente críticas à então primeira-ministra de Israel Golda Meir e defendendo a convivência entre um estado da Palestina e outro de Israel. A canção continua a ser um clássico da música israelita e até teve uma versão em francês de Joe Dassin. Por entre mudanças de formação e vários projetos a solo, os Kaveret ainda actuam juntos ocasionalmente.
Romuald (Mónaco)
E como se já não houvessem bastantes empates, três países repartiram o quarto lugar com 14 pontos: Reino Unido, Luxemburgo e Mónaco. Dez anos depois, o francês Romuald Figuier (1938-) voltava a representar o principado do Mónaco (tendo de representado o Luxemburgo em 1969), interpretando "Celui qui reste et celui qui s'en va" ("aquele que fica e que aquele que parte"), num resplandecente fato de lantejoulas. Segundo a Wikipedia, Romuald estava habituado a representar vários países em festivais de música: em 1968 representou Andorra no Festival de São Paulo e o Luxemburgo no Festival de Sopot na Polónia e em 1973, ficou em segundo lugar pela França no Festival Viña Del Mar no Chile com "Laisse-moi le temps", que teria uma versão em inglês produzida por Paul Anka e gravada por Frank Sinatra.
Ireen Sheer (Luxemburgo)
OLuxemburgo era famoso por importar cantores de várias nacionalidades nas suas participações na Eurovisão e nesse ano, a sua representante foi a britânica Ireen Sheer (1949-), radicada na Alemanha desde 1970. "Bye bye I love you", que apesar do título era sobretudo cantada em francês, marcou a primeira participação do compositor alemão Ralph Siegel no Festival da Eurovisão, tendo composto muitas outras canções concorrentes no evento ao longo das décadas seguintes, sobretudo pela Alemanha, nomeadamente a canção vencedora do certame em 1982, mas também para Luxemburgo, Suíça, Montenegro e São Marino. Ireen Sheer regressaria à Eurovisão mais duas vezes, em 1978 pela Alemanha e em 1985 novamente pelo Luxemburgo.
Olivia Newton-John (Reino Unido)
Como país anfitrião, o Reino Unido apostava forte, fazendo-se representar por Olivia Newton-John (1948-2022), que então já gozava de grande sucesso internacional. Apesar de ter crescido na Austrália, Olivia Newton-John nasceu em Cambridge, pelo que representava o seu país de nascimento com o tema "Long live love". Esta participação na Eurovisão acabou por ser apenas um fait-divers na gloriosa carreira de Olivia Newton-John, com os seus dois maiores auges ainda por acontecer: o filme "Grease" em 1978 e o álbum "Physical" em 1981.
Mouth & MacNeal (Países Baixos)
Com quinze pontos, os Países Baixos ficaram em terceiro lugar, graças ao tema "I see a star", defendido pelo duo Mouth & MacNeal, composto por Willem "Big Mouth" Duyn (1937-2004) e Sjoukie "Maggie MacNeal" Van 't Spijker (1950-), que atuava junto desde 1971. Foi uma actuação bem disposta da canção em que não faltou um realejo que ao manobrar, fazia girar dois bonecos representando a dupla. Ainda nesse ano Mouth e MacNeal terminaram a colaboração, com ele continuando com uma nova parceira, Little Eve, e ela numa carreira a solo. Em 1980, Maggie MacNeal voltou à Eurovisão representando os Países Baixos em Haia com "Amsterdam".
Gigliola Cinquetti (Itália)
Em 1964, Gigliola Cinquetti (1947-) tinha dado à Itália a primeira vitória no Festival da Eurovisão com o intemporal "Non ho l'etá". E dez anos depois, quase que ganhava novamente, ficando em segundo lugar com 18 pontos. Agora Cinquetti já tinha idade para amar e cantou "Sí". Porém, o Festival só seria transmitido em Itália mais de um mês depois, isto porque em Maio de 1974 houve em Itália um referendo sobre o divórcio. Os italianos foram consultados sobre se queriam que o divórcio, legalizado em 1971, voltasse a ser ilegalizado. Como a canção tinha o título "sim" repetido várias vezes, para não haver acusações de influência subliminar, a RAI só transmitiu o Festival e a canção só passou na rádio pública após o referendo (que deu a vitória ao "não", mantendo o divórcio legalizado). Gigliola Cinquetti continuou a ter uma carreira consagrada e regressou ao Festival da Eurovisão nas próximas duas vezes que o evento se realizou em Itália: em 1991 em Roma, como apresentadora (infelizmente contaminada pela condução desastrosa do seu coapresentador Toto Cutugno) e em 2022 em Turim, onde voltou a cantar "Non ho l'etá".
ABBA (Suécia)
Desde início que a Suécia tomou a liderança para não mais largar, e 24 pontos asseguraram a primeira vitória para o país nórdico. Tendo em conta a canção que é, dá ideia que a vitória foi retumbante mas mesmo sempre liderando nunca se distanciou muito dos seus rivais e só assegurou o triunfo na última votação. Além disso, segundo a imprensa da época, a canção sueca não fazia parte dos principais favoritos e não faltou quem dissesse que foi uma vitória imerecida.
Essa canção era, claro está, "Waterloo" dos ABBA. E a história do quarteto maravilha sueco é sobejamente conhecida: em 1972, unidos pela música e pelo amor, Agnetha Faltskog, Björn Uelvaus, Benny Andersson e Anni-Frid Lyngstad juntaram-se para um projecto conjunto ao qual deram o nome das suas iniciais. Após terem ficado em terceiro lugar na final sueca de 1973 com "Ring Ring", no ano seguinte conquistaram tudo e todos, com uma sonoridade e uns visuais ao estilo do glam rock, onde nem faltou o orquestrador Sven-Olof Walldoff vestido à Napoleão. A letra de "Waterloo" comparava a rendição de Napoleão na célebre batalha da dita localidade a alguém render-se a um novo amor. Curiosamente, a canção não recebeu quaisquer pontos do Reino Unido, a nação vencedora da batalha, nem da Bélgica, o país onde actualmente está situada Waterloo. "Waterloo" teve grande sucesso internacional, atingindo o primeiro lugar do top de vários países como o Reino Unido e a Alemanha e até chegando ao sexto lugar do top americano.
Nos anos seguintes, os ABBA tornar-se-iam um dos mais bem-sucedidos grupos de sempre, somando hits intemporais como "Dancing Queen", "Mamma Mia" e "The Winner Takes It All", e deixando um legado tão marcante na história da música popular que o seu regresso aos discos em 2021 com o álbum "Voyage", após quarenta anos de interregno, foi todo um acontecimento. "Waterloo" é ainda hoje considerada a mais importante canção da história do Festival da Eurovisão, tendo sido eleita como a melhor canção eurovisiva de sempre numa votação pública por ocasião da gala dos 50 anos do Festival em 2005.
Festival da Eurovisão 1974 (sem a actuação dos ABBA)
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