Após cerca de duas décadas com várias crises socioeconómicas, ao que nos últimos anos se acrescentou uma pandemia global e os efeitos colaterais do regresso da guerra na Europa, Portugal chega aos 50 anos do 25 de Abril com um desencantamento generalizado, que até tem alavancado alguns saudosismos dos tempos anteriores ao da Revolução.
Porém em 1999, quando se assinalou o primeiro quarto de século após a Revolução dos Cravos, viviam-se tempos indubitavelmente mais optimistas. A economia prosperava com um crescimento acima da média da União Europeia, a democracia estava consolidada e recomendava-se, havia uma estabilidade política como nunca antes nem depois se verificou, Lisboa tinha acolhido a Expo 98 e José Saramago tinha sido galardoado com o Prémio Nobel da Literatura. Além disso, dois acontecimentos mobilizariam a população precisamente nesse ano de 1999: as massivas manifestações de solidariedade para com Timor Leste, que fora alvo de violentos ataques da Indonésia após um referendo para a sua independência, e a candidatura bem-sucedida à organização do Euro 2004. Portugal preparava-se para entrar no ano 2000 com uma autoconfiança e um optimismo nunca vistos.
Eram também os tempos em que a SIC, apesar de ter menos de sete anos de emissões, dominava o panorama televisivo sem discussão e o jubileu de prata do 25 de Abril foi a ocasião ideal para levar a cabo aquela que era uma das suas mais ambiciosas produções até então.
"A Hora Da Liberdade" foi uma recriação ficcionada dos principais acontecimentos da Revolução. Originalmente, a sua emissão das mais de 160 minutos de filme foi feita em treze blocos que passaram na SIC entre 24 e 26 de Abril de 1999, sensivelmente à mesma hora em que teriam acontecido vinte e cinco anos antes. A produção foi idealizada por Emídio Rangel, então director da SIC, Rodrigo Sousa e Castro, um dos Capitães de Abril e a realizadora Joana Pontes. A narração dos blocos esteve a cargo de Alberto Ramos.
A narrativa desta ficção documental começa recuando até ao dia 24 de Abril de 1974, nos preparativos dos quartéis para a revolução. Às 22 horas e 43 minutos, o radialista João Paulo Diniz, dos Emissores Associados de Lisboa, anuncia a canção "E Depois Do Adeus" interpretada por Paulo de Carvalho, que semanas antes tinha representado Portugal no Festival da Eurovisão, que serviu de senha para o arranque da operação.
Veem-se então alguns dos principais militares que estiveram ao leme da Revolução: o Major Otelo Saraiva de Carvalho (António Capelo), o Comandante Vítor Crespo (Alexandre de Sousa), o Major Sanches Osório (Jorge Gonçalves), o Tenente-Coronel Lopes Pires (Francisco Pestana), o Tenente-Coronel Garcia dos Santos (Marcantónio Del Carlo), o Major Hugo dos Santos (Paulo Matos) e o Capitão Luís Macedo (João de Carvalho).
Às 0:20 do dia 25, o locutor Leite de Vasconcelos da Rádio Renascença anuncia a canção "Grândola Vila Morena" de Zeca Afonso, a senha para o início da saída das tropas. (Para a produção, foi utilizada a reprodução inicial desse momento na fita magnética original.) Um dos primeiros batalhões a sair é o da Escola Prática da Cavalaria de Santarém, liderado pelo Capitão Salgueiro Maia (Manuel Wiborg).
Nessa madrugada, as tropas revoltosas tomam sem resistência o Quartel-General de Lisboa e depois a Rádio Clube Português onde Joaquim Furtado (Eurico Lopes) anuncia o primeiro comunicado do Movimento das Forças Armadas. Ao nascer do dia, as tropas comandadas por Salgueiro Maia ocupam o Terreiro do Paço enquanto as tropas da Escola Prática da Artilharia ocupam posições junto ao Cristo-Rei.
As forças do Governo, lideradas pelo General Andrade e Silva, Ministro do Exército (Rui Mendes) e com o aval do Ministro da Defesa, Dr. Silva Cunha (Luís Mascarenhas) reagem à revolta. Um navio da Marinha surge no Rio Tejo e algumas forças da GNR enfrentam as tropas revoltosas mas o momento de maior tensão surge quando uma força blindada da Cavalaria 7, liderada pelo Brigadeiro Junqueira dos Reis (Artur Ramos) chega à Praça do Comércio. Mas para estupefação deste, os militares dessa força recusam a abrir fogo sobre os revoltosos.
Ao princípio da tarde, as tropas comandadas por Salgueiro Maia conseguem chegar ao Carmo e cercar o Quartel onde se encontra Marcello Caetano (José Manuel Mendes). O Capitão encara o Presidente do Conselho de Ministros, que se rende incondicionalmente após a chegada do General António de Spínola (Júlio Cardoso) ao quartel.
Nessa noite, o General Spíniola chega ao posto de comando dos militares revoltosos onde serão feitas as negociações que levarão à formação da Junta de Salvação Nacional que governará o país até às primeiras eleições livres.
Após a exibição original e a sua exibição compactada na noite do dia 26 de Abril, "A Hora Da Liberdade" tem sido reposta regularmente pela SIC ou na SIC Notícias por alturas do 25 de Abril. Apesar de me lembrar de ver alguns blocos da emissão original de 1999, foi numa reposição em 2017 na SIC Notícias que vi mais atentamente.
Além dos nomes já citados, entre os outros actores que participaram neste docudrama estiveram Almeno Gonçalves (Tenente-Coronel Almeida Bruno), André Gago (Brito e Cunha), António Cordeiro (Capitão Andrade e Sousa), Cristina Carvalhal (Clarisse Guerra, locutora do RCP), Diogo Morgado (Aspirante Teixeira), Gonçalo Waddington (Tenente Almas Imperial), Guilherme Filipe (Major Pato Anselmo), Heitor Lourenço (Alferes Sottomayor), Henrique Feist (Alferes David e Silva), Ivo Canelas (Tenente Santos e Silva), José Boavida (Capitão Bicho Beatriz), José Jorge Duarte (Pedro Feytor Pinto), Luís Esparteiro (Major Costa Neves), Marco Delgado (Capitão Luís Pimentel), Marques D'Arede (Coronel Álvaro Fontoura) Pedro Lima (Alferes Maia Loureiro), Rui Luís Brás (Tenente Ponces de Carvalho) e Vítor Norte (Major do Comando Jaime Neves).
Além das partes recriadas, foram utilizadas várias imagens de arquivos da RTP, nomeadamente aquelas da multidão que se junto no Largo do Carmo e a leitura do comunicado da Junta de Salvação Nacional na RTP, após Fialho Gouveia apresentar os seus componentes.
Sem dúvida que se tratava de uma produção monumental e dispendiosa (notava-se que estávamos nos tempos em que a SIC nadava em dinheiro) e mais de duas décadas depois, ainda não parece muito datada. As Forças Armadas contribuíram para o projecto cedendo vários meios, como um vaso de guerra e vários militares para a figuração, além de arquivos das instruções da campanha. Os militares da revolução que então ainda estavam vivos assistiram às gravações e Otelo Saraiva de Carvalho fez um cameo na cena final, quando o actor António Capelo desliga um rádio após um close-up do interruptor, a câmara mostra o Major em 1999.
Todo o elenco esteve bastante bem mas para mim os destaques vão para Manuel Wiborg e José Manuel Mendes, que pelo seu desempenho e parecenças físicas, quase pareciam reencarnações de Salgueiro Maia e Marcello Caetano. E claro que para mim a cena mais marcante foi aquela em que dois ficam cara a cara, o Professor já amargando na derrota mas fazendo tudo para não perder a pose, e o Capitão encarando-o com bravura (mas sem desrespeito), como que carregando consigo a vontade do povo.
O site "Brinca, Brincando" (para quem vai um trilionésimo agradecimento pela informação fornecida) refere que houve uma polémica entre a SIC e a actriz Maria de Medeiros, que no ano seguinte fez a sua estreia como realizadora com o filme "Capitães de Abril", e que numa entrevista à TV Guia, alegou que quando contactou a SIC para um parceiro televisivo para o filme, ficaram com o seu guião e que depois apareceram com "alguns dos aspectos completamente copiados" embora considerasse os produtos eram "bastante diferentes". A SIC repudiou as afirmações, declarando em comunicado que o trabalho em relação a "A Hora Da Liberdade" já estava a ser preparado antes da actriz ter apresentado seu projecto.
"A Hora da Liberdade" teve posteriormente edição em VHS e em 2012, foi editado um livro sobre o projecto que incluía o DVD do programa. Está também disponível na versão gratuita da Opto SIC e no YouTube.
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