segunda-feira, 16 de janeiro de 2023

White Town "Your Woman" (1996)

Existem canções que surgem à frente do seu tempo. Existem canções que teimam em não envelhecer uma ruga. E existem canções que conseguem inesperadamente conjugar o passado, o presente e o futuro em si. É o caso de "Your Woman" de White Town, que encapsulava tão bem os três que subiu ao primeiro lugar do top britânico no início de 1997 e é um dos mais inconvencionais hits clássicos da década. Por exemplo, em 2010 a revista Pitchfork considerou-a uma das 200 melhores canções dos anos 90 (em 158.º lugar).



Como acontece na génese de tantos projectos musicais, White Town começou por ser uma banda mas acabou por ser um pseudónimo para o espólio musical de apenas uma pessoa. Neste caso, o de Jyoti Mishra, nascido a 30 de Julho de 1966 na cidade indiana de Rourkela, que aos três anos mudou-se com a família para Derby em Inglaterra. Crescendo como um jovem indiano introvertido numa cidade predominantemente branca (daí o seu pseudónimo musical), Mishra encontrou refúgio na música. 

A actual foto de perfil de Jyoti Mishra no Twitter


Inspirado por um concerto dos Pixies, Jyoti Mishra decidiu formar uma banda de rock alternativo com mais três amigos da universidade em 1989 a quem deu o nome de White Town, mas um ano depois, já estava sozinho no projecto colaborando ocasionalmente com outros músicos.
O primeiro álbum de White Town, "Socialism, Sexism & Sexuality" foi editado em 1994 e, apesar de algumas boas críticas da crítica especializada e do lendário radialista da BBC John Peel ter tocado uma faixa, "Heather's Party", passou despercebido. 

Com a tecnologia ao serviço de criação de música a evoluir, em 1996 Jyoti Mishra decidiu criar novos temas com um sampler, um microfone, um gravador de oito faixas e um CD-ROM que vinha numa revista. Hoje em dia, é bastante comum para músicos, dos mais famosos ao mais amadores, criar música nos seus quartos com todo o tipo de programas digitais em vez de ir para estúdio, mas nos anos 90, tal prática ainda estava no início. Enfim, armado com todo esse arsenal digital, Mishra compôs quatro faixas que fizeram parte do EP "Abort, Retry, Fail?", assim chamado porque foram essas palavras que apareceram quando o seu computador crashou enquanto mixava as faixas do disco, o que levou a que passasse os próximos três dias a reformatar tudo. 
Um das faixas do EP era "Your Woman", que continha algo que se revelaria o principal ingrediente para o seu sucesso: um sample de "My Woman", uma canção originalmente gravada em 1932 de Lew Stone & His Monseigneur Band e cantada por Al Bowlly (que curiosamente nasceu em Lourenço Marques, Moçambique). (Não, ao contrário do que muitos julgam, esse sample não era da "Imperial March" da trilogia "A Guerra das Estrelas"!) Jyoti Mishra lembrava-se de "My Woman" de ter visto a minissérie musical da BBC "Pennies From Heaven" (1978) com Bob Hoskins, que fazia playback de "My Woman", em especial do solo inicial de trompete que seria samplado em "Your Woman".



Aos poucos, "Your Woman" foi chamando a atenção das rádios britânicas, que foram tocando até que a EMI ofereceu um contrato a Mishra e o tema foi reeditado como single no início de 1997, tendo chegado ao n.º1 do top do Reino Unido e mais tarde de Espanha, Islândia e Israel, e até chegou ao n.º 23 do top americano, numa altura em que não eram muitos os artistas britânicos singravam nos States. 

Para além do infecioso sample, outros dois factores chamaram a atenção do público. O videoclip filmado em Derby a preto e branco que era uma homenagem (com uma pitada de paródia) aos filmes do cinema mudo, que contava a competição (por vezes literal) entre a heroína ingénua e andrajosa e a vamp vilã pelo afecto de um homem algo empertigado e onde Jyoti Mishra aparecia em ecrãs de televisão. A outra foi a própria letra, pois tratava-se de um homem a cantar que nunca poderia ser a mulher de alguém. Surgiram muitas interpretações (Um homem apaixonado por uma lésbica? Um gay apaixonado por um heterossexual?) com Mishra a afirmar que podia haver muitas válidas. Mas a interpretação mais consensual é a que a letra é do ponto de vista de uma mulher que está a aperceber-se de que o seu amado não passa de um escroque pretensioso (e possivelmente um marxista performativo). Mishra terá sido inspirado por conhecidas suas nessa situação e por ele achar que a composição musical do ponto de vista masculino é enviesado pela dualidade santa/meretriz pela qual os homens costumam ver as mulheres. 



O álbum "Women In Technology" saiu em 1997, mas a recusa de Jyoti Mishra em fazer as típicas promoções como actuações em programas de televisão (por exemplo o "Top Of The Pops") e entrevistas para revistas generalistas, aliada à incapacidade da editora em conseguir promover um material que não se encaixava num género específico, levou a um desempenho modesto em termos de vendas, apesar de críticas positivas. O single "Undressed" ainda chegou ao n.º 57 do top britânico, mas "Wanted", uma das três faixas cantadas por Ann Pearson, passou completamente ao lado.

Sem qualquer surpresa, Mishra rescindiu com a EMI e desde então lançou mais cinco álbuns independentemente (o mais recente em 2021), continuando a imprimir à sua obra um cunho experimentalista e o activismo político. Por exemplo, no seu álbum de 2006, "Don't Mention The War", existe uma faixa, "These Are The MPs", que é uma lista dos nomes dos deputados do parlamento britânico que aprovaram a participação do Reino Unido na invasão ao Iraque em 2003. 


E mesmo se não guarda muitas saudades do seu breve momento na ribalta, Jyoti Mishra continua orgulhoso do impacto que "Your Woman" teve no público. Não só ainda canta regularmente o tema ao vivo como por vezes comenta no YouTube a agradecer em vídeos que falam  sobre a canção, como aquele de um dos meus YouTubers preferidos, Todd In The Shadows. Em 2017, houve uma nova versão chamada "Your Woman 1917" com instrumentos comuns em 1917.  

E o legado de "Your Woman" estendeu-se a outras obras: não só inúmeras covers em variadíssimos géneros, como o sample foi utilizado por exemplo em "Power Woman" pela dupla alemã Mark Van Dale & Enrico em 1998, por Naught Boy com Wiley e Emeli Sandé em "Never Be Your Woman" de 2010 e em "Love Again" de  Dua Lipa em 2020. Em 2007, uma comédia romântica com Michelle Pfeiffer e Paul Rudd recebeu o título de "I Could Never Be Your Woman" (curiosamente em Portugal, o título para o filme nestas bandas, "Nem Contigo Nem Sem Ti" foi escolhido por entre sugestões do público!).

Undressed


"Wanted" (com Ann Pearson)



Lew Stone Monseigneur Band com Al Bowlly "My Woman"





Se gostou, Partilhe: »»

Save on Delicious

Sem comentários:

Enviar um comentário

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...