Eu sou suspeito por ser licenciado em Estudos Franceses e Ingleses, mas adoro a língua francesa e a sua sonoridade. Até gosto do facto de a pronúncia de grande parte das suas palavras ser diferente daquela que as letras que as compõem sugerem (pelo menos aos olhos portugueses). Apesar de só ter começado a estudá-la no 7.º ano, já tinha algumas noções de língua de Voltaire através de um livro que os meus pais me compraram no Círculo de Leitores que ensinava algumas frases e palavras em francês e inglês. Confesso que o meu domínio do francês não é tão forte como o do inglês mas sempre que tenho oportunidade para falar, ouvir ou ler em francês, tento aproveitá-la ao máximo.
E claro está, aprecio bastante a música francófona desde os tempos de ícones como Edith Piaf e Jacques Brel até à actualidade. E sendo um filho dos anos 80 tenho um carinho especial pelas três canções em língua francesa que se tornaram sucessos internacionais nessa década: a pop de sangue azul em "Ouragon" na voz da Princesa Stéphanie do Mónaco; "Joe Le Taxi" chilreada por uma muitíssimo jovem Vanessa Paradis; e "Voyage Voyage" interpretada pela parisiense Claudie Fritsch-Meintrop sob o nome de Desireless.
Nascida na Cidade-Luz no dia de Natal de 1962, Claudie trabalhou como estilista nos anos 70 até que em 1982, uma viagem à Índia inspirou-a a enveredar pela música. Em 1984, integrou o grupo Air 89 que lançou um álbum e em 1986, lançou-se numa carreira a solo com o nome Desireless, compondo uma personagem andrógina e fria, sempre vestida de negro. Mas o seu aspecto mais marcante era sem dúvida o penteado com o cabelo todo em pé.
Editado no final de 1986, o seu primeiro single "Voyage Voyage", um contagiante tema electro-pop. Na altura, eu ainda não percebia patavina de francês mas lembro-me de gostar de ouvir a música sempre que dava na rádio ou o videoclip na televisão. Ainda que o dito cujo, realizado pela famosa fotógrafa Bettina Reims, me metesse um pouco de medo: num salão de casarão mal iluminado (quiçá um manicómio), Desireless mostra slides com imagens de todo o mundo a um grupo de personagens bizarras incluindo três senhoras entretidas num frenético jogo de cartas, um casalinho de jovens que namora a um canto, um senhor alto que abana incessantemente a cabeça enquanto brinca com uma bola insuflável com o desenho do mapa-mundo com um senhor mais baixo e uma mulher que devora algo que nunca percebi bem o que era (batatas fritas? bolinhos?) que tem numa tigela. Essas estranhas personagens a princípio parecem desinteressadas nos slides até que de repente algo lhes chama a atenção e reúnem-se todas a ver as imagens que surgem no ecrã.
Mais tarde, quando já dominava o idioma e quis saber o significado da letra, descobri que se tratava de um belíssimo poema sobre como viajar não só nos dá a conhecer o mundo mas como também nos conduz numa viagem ao nosso interior. Daí que quando Desireless canta "Voyage...et jamais ne reviens", não está a dizer para nunca mais regressarmos a casa mas sim para não voltarmos a ser quem éramos antes da viagem. Eis a minha tradução da letra:
No cimo do velhos vulcões
Desliza as asas pelos tapetes de vento
Viaja, viaja,
Eternamente.
Das nuvens aos pantanais,
Dos ventos de Espanha às chuvas do Equador,
Viaja, viaja,
Voa nas alturas.
No alto das capitais,
Das ideias fatais
Observa o oceano.
Viaja, viaja,
Mais longe que a noite e que o dia.
Viaja
No espaço inaudito de amor.
Viaja, viaja
Sobre a água sagrada de um rio indiano.
Viaja
E nunca mais regresses.
Sobre o Ganges ou o Amazonas
Entre os negros, entre os sikhs, entre os asiáticos
Viaja, viaja
Por todo o reino.
Sobre as dunas do Sahara
Das ilhas Fiji ao Fujiyama
Viaja, viaja,
Não te detenhas.
Sobre os arames farpados,
Os corações bombardeados,
Observa o oceano.
Viaja, viaja,
Mais longe que a noite e que o dia.
Viaja
No espaço inaudito de amor.
Viaja, viaja
Sobre a água sagrada de um rio indiano.
Viaja
E nunca mais regresses.
Em França, "Voyage Voyage" ficou-se pelo n.º 2 do top nacional, bloqueado no topo por "T'en Va Pas" da estrela adolescente Elsa Lunghini. Mas o tema era tão poderoso que não tardou a quebrar a barreira linguística e fazer sucesso fora dos países francófonos, tendo chegado ao n.º 1 na Alemanha, Áustria, Noruega e Espanha ao longo de 1987. Em 1988, uma edição com remistura dos PWL ajudou "Voyage Voyage" a tornar-se um dos raros temas cantados em francês a chegar ao top 10 no Reino Unido. Por essa altura, Desireless já tinha editado um novo single, "John", uma tema que falava sobre guerra e religião.
Com o prolongado sucesso de "Voyage Voyage" que levou Desireless a percorrer toda a Europa a promover o tema, o seu primeiro álbum, "François" (o nome do seu marido, François Meintrop), só veria a luz do dia em 1989, já quando o interesse na cantora tinha esmorecido.
No entanto, mesmo sem nunca ter sequer aproximado o sucesso de "Voyage Voyage", Desireless nunca mais deixou de fazer música e actuar ao vivo. Desde 2012 que tem feito a sua carreira em dueto com o compositor Antoine Aureche e o seu disco mais recente, "Desirless Chante Apollinaire", é de 2017. Entretanto "Voyage Voyage" continua a ser incluído em várias festas e compilações dos anos 80 por esse mundo fora.
Desireless "L'expérience humaine" (2011)
De entre as versões do tema, destaque para a cover de 2008 da cantora belga Kate Ryan e a versão em espanhol de 1991 da boyband mexicana Magneto com o título "Vuela Vuela".
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