Nem só de memórias é feita a Enciclopédia de Cromos, mas também de algumas descobertas de sons e imagens de outros tempos ao vasculhar o vasto espaço cibernético. Foi o que aconteceu quando acedi a um canal de Youtube de um DJ italiano que publica vídeos com as suas 100 canções preferidas de um dado ano (à data, estão disponíveis tops de 1979 a 1995, mais 2016). Quando ele publicou a sua lista referente ao ano de 1994, no n.º 93 houve um tema que me chamou a atenção. Tratava-se de um tema de dança com um coro de crianças e quando mais descobri sobre ele, mais fiquei fascinado. Eu nunca tinha ouvido este tema antes, até porque o seu sucesso esteve basicamente limitado ao seu país de origem, a Itália. Trata-se de "Gam Gam", tema de 1994 dos DJ/produtores Mauro Pilato e Max Monti.
Em boa verdade, até não é dos mais bem produzidos temas da cena techno-house italiana dos anos 90, as batidas e os drops são algo básicos e convencionais para a altura, pelo que o grande trunfo é sem dúvida as vozes infantis que parecem conferir uma aura espiritual. E é ao descobrir mais sobre isso que as coisas ficam mais interessantes.
A língua em que canta o coro de crianças é hebraico e as palavras são retiradas do Salmo 23 da Bíblia, adaptado musicalmente por Elie Botbol e interpretado pelo coro infantil franco-israelita Chevatim.
Gam-Gam-Gam Ki Elekh (Mesmo se eu caminhar)
Be-Beghe Tzalmavet (Pelo vale da escuridão)
Lo-Lo-Lo Ira Ra (Não temo nenhum mal)
Ki Atta Immadì (Por que Tu* estás sempre comigo)
Šivtekhà umišantekhà (Porque Tu serás minha bengala, meu apoio)
Hema-Hema yenahmuni (Contigo sinto-me tranquilo)
* Este"Tu" refere-se obviamente a Deus
E então, onde é que Pilato e Monti foram buscar a ideia de fazer um tema dance a partir de um coro infantil a cantar um salmo bíblico em hebraico? Literalmente ao filme italiano de 1993 "Jona che visse nella balena" (em português "Jonas que viveu na baleia", se bem que o título oficial em Portugal seja um rotundo e menos poético "Sobreviver Ao Nazismo") realizado por Roberto Faenza, baseado na biografia do escritor e físico holandês Jona Oberski que em criança viveu todos os horrores da segregação racial e dos campos de concentração durante a Segunda Guerra Mundial, aos quais sobreviveu embora tendo perdido os seus pais. A música é do lendário Ennio Morricone.
"Gam Gam" é cantado numa cena de uma aula de música no campo de concentração, em que o pequeno Jona (Luke Petterson) confessa em voz-off que não conseguia cantar os cânticos ensinados porque não percebia as palavras em hebraico por isso por vezes improvisava relutantemente um playback a abrir e fechar a boca. E é precisamente esta cena que Mauro Pilato e Max Monti samplaram para o seu tema, incluindo a fala voz-off em italiano.
"Gam Gam" não teve videoclip, existindo apenas esta algo bizarra actuação na televisiva italiana com um grupo de crianças a fazer playback.
Já em 2003, o tema tinha remisturado por Gabriele Ponte, famoso por ser um dos membros dos Eiffel 65.
Max Monti (foto do Twitter) |
Acima de tudo, a descoberta deste tema fez-me reflectir sobre o mundo nos anos 90, nos quais eu fiz a minha travessia da infância, adolescência e inícios da maioridade, e a comparação com o mundo actual. Nos tempos actuais do politicamente correcto, de fúrias cibernéticas e de gritos de indignação por dá-cá-aquela-palha, não duvido que se hoje alguém se lembrasse de fazer uma tema dance baseado num coro infantil a cantar uma passagem bíblica em hebraico, ainda para mais retirado de um filme sobre o Holocausto, haveriam de se levantar vozes a gritar um alegado desrespeito e ofensa às vítimas do Shoah.
Mas em 1994, não consta que tivessem havido muitas vozes indignadas com esta versão e devem ter sido muitos mais aqueles que dançaram entusiasticamente ao som dela nas discotecas italianas e além-fronteiras. Talvez porque na altura, mais do que infelizmente na actualidade, era mais fácil acreditar que a Humanidade tinha aprendido a lição e que os horrores do Shoah eram algo impossível de se repetir.
Mas em 1994, não consta que tivessem havido muitas vozes indignadas com esta versão e devem ter sido muitos mais aqueles que dançaram entusiasticamente ao som dela nas discotecas italianas e além-fronteiras. Talvez porque na altura, mais do que infelizmente na actualidade, era mais fácil acreditar que a Humanidade tinha aprendido a lição e que os horrores do Shoah eram algo impossível de se repetir.
"Gam Gam" cantado pelo coro "Voci Liberi"
Versão de Ennio Morricone para o filme "Jona che visse nella balena"
Trailer do filme (versão dobrada em inglês)
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