segunda-feira, 5 de maio de 2025

Crónica dos Bons Malandros (1984)

O Portugal da primeira metade dos anos 80, já recuperado da ressaca da Revolução mas ainda a braços com diversos tormentos (a começar por uma severa crise económica) antes da entrada da CEE abrir rumo a tempos mais prósperos, exerce um fascínio sobre mim. Primeiro porque foi nesse Portugal que eu vim a este mundo e depois porque, apesar dos diversos espinhos, foi um tempo em que, uma vez assimilada a liberdade, havia um desejo de ousadia e diferença, sobretudo nas artes. Ou não fosse essa a época, por exemplo, do boom do rock português. 

É também nesse Portugal que nasce a "Crónica dos Bons Malandros", primeiro o livro, escrito por Mário Zambujal, originalmente editado em 1980. E quatro anos mais tarde, a adaptação cinematográfica, realizada por Fernando Lopes e com um elenco de primeira apanha, que incluía João Perry, Lia Gama, Nicolau Breyner, Maria do Céu Guerra e Paulo de Carvalho. E tendo eu visto recentemente pela primeira vez o filme de fio a pavio durante uma transmissão na RTP2 e também lido o filme, impunha-se este artigo.  



Edição de 2011


A história fala sobre a desventura da quadrilha de Renato, O Pacífico (Perry) que se  reúne regularmente no Bar do Japonês e se dedica a pequenos golpes no Bairro Alto. Renato é conhecido pela alcunha de Pacífico pela sua aversão a armas, pelo que os assaltos da sua quadrilha são efetuados sem armas, sejam elas de fogo ou brancas, e acontecem quando não está ninguém nos sítios que vão roubar. A quadrilha é também composta por Marlene (Gama), a inseparável companheira de Renato; Pedro, o Justiceiro (Breyner), hábil arrombador de portas e fechaduras; Flávio, o Doutor (Pedro Bandeira-Freire), o cérebro das operações; a melancólica Adelaide Magrinha (Guerra); o irascível Arnaldo Figurante (Carvalho); e Silvino Bitoque (Duarte Nuno), ardiloso cleptómano. 
Certo dia, a quadrilha é contratada por um italiano para um golpe monumental: roubar as joias da coleção Lalique expostas no Museu da Gulbenkian. 



Tanto no livro, como no filme, enquanto o plano vai sendo elaborado, dá-se a conhecer o background de cada um dos elementos da quadrilha. Renato e Marlene conheceram-se no Circo Internacional ainda crianças e tornaram-se inseparáveis para a vida. Após um brutal ato de vingança após as crueldades da sua professora da quarta classe, Pedro fugiu e viu o seu destino traçado para o banditismo. A um ano de completar o seu curso de Direito, Flávio perdeu-se de amores por Zinita (Ariana), com quem foi obrigado a casar e armar desvios na empresa para satisfazer os seus caprichos. Adelaide apaixonou-se por Carlos (Virgílio Castelo) num baile mas quando ele foi preso pela polícia e ela se viu sem nada, tentou a prostituição pela mão de Lina, a Despachada (Zita Duarte), mas uma enrascada com dois clientes que meteu a polícia ao barulho, levou-a até à quadrilha. Arnaldo sonhou com a glória, primeiro no boxe e depois no cinema, quando foi figurante numa prestigiada produção luso-francesa. Silvino desde muito cedo deitava a mão a tudo que podia, desde a chupeta do irmão gémeo a um rádio em forma de lata de Coca-Cola, e até ludibriou o FBI na América. 

Surge um contratempo quando Adelaide desaparece, deixando um carta onde explica que decidiu fugir para fora do país com Carlos, recém-saído da prisão. Ainda assim, o plano segue em marcha, com uma ideia astuciosa: para afugentar os visitantes e os seguranças da Gulbenkian e ludibriar as vigilâncias, lançarão um enxame de abelhas escondido debaixo do assento de uma cadeira de rodas.
Chega o dia do assalto e o plano parece resultar em cheio até que se descobre que Silvino traiu a quadrilha, apoderando-se das joias roubadas, preparando-se para escapar disfarçado de polícia. Dá-se então uma desenfreada perseguição de Renato e do resto do grupo atrás do traidor e da polícia atrás deles, com um desfecho trágico em plena Baixa Pombalina. 


"Crónica dos Bons Malandros" foi um grande sucesso editorial, com inúmeras reedições até aos dias de hoje. Mário Zambujal era conhecido do grande público como jornalista da RTP, apresentando o "Domingo Desportivo", além do seu marco na rádio com o programa "Pão Com Manteiga" na Rádio Comercial, co-apresentado com Carlos Cruz. Desde então, Mário Zambujal continuou a escrever mais livros como "À Noite, Logo Se Vê", "Histórias Do Fim Da Rua", "Já Não Se Escrevem Cartas De Amor" e "Cafuné".  Também escreveu guiões para séries como "Lá Em Casa Tudo Bem" e "Nós, Os Ricos". 

Quanto à adaptação cinematográfica, dá para descrever numa só palavra: castiça. Não sendo muito bom, sobretudo devido à falta de meios mas também por algumas escolhas menos acertadas, o filme ilustra bem o espírito do Portugal da época, com o desejo de fazer mais e diferente, apesar das várias restrições, sobretudo económicas. 
Famosamente, não foi obtida autorização para filmar dentro da Gulbenkian, pelo que em seu lugar, houve uma bizarra sequência animada onde se misturavam stills das obras expostas no museu, gráficos a fazer lembrar o jogo do Pacman, desenhos das personagens e até um plano de pés a correr. 
Mas pessoalmente, eu achei que o principal problema do filme é o ritmo, que é quebrado de algumas vezes. Claro que fazia sentido, tal como no livro, haver sequências sobre os backgrounds dos sete protagonistas, mas a forma como foi feita foi meio desigual: algumas foram feitas de forma interessante (como o recurso de fantoches para a história de Pedro e as referências cinematográficas na de Arnaldo) mas por outro lado a sequência musical na história de Adelaide é desnecessariamente longa e a de Renato e Marlene meio aborrecida. Além disso, com tanto tempo do filme destinado a essas histórias, não dá tempo para o espetador se conectar com as personagens e as suas relações intercaladas no primeiro acto e não há quase nenhum buildup rumo ao momento do assalto. Até as cenas das perseguições parecem mais focadas nas acrobacias dos carros da polícia no Rossio do que em dar fio à meada. 
Ainda assim, o filme foi um assinalável sucesso de bilheteira. 



Por outro lado, o elenco faz o melhor que pôde com o pouco que lhe foi dado e existem vários momentos engraçados: a Lina Despachada de Zita Duarte rouba toda a cena na esquadra da polícia, a folha picotada em forma de Rato Mickey quando o FBI procura por Silvino e o piscar de olho da imagem do General Ramalho Eanes num mural. Existem também vários cameos como António Assunção, Artur Semedo, o próprio Mário Zambujal (que quebra o fourth wall para se identificar como narrador) e, sobretudo, um jovem Manuel Luís Goucha como um dos clientes caloteiros de Lina e Adelaide.    
A música do filme, além de um proeminente uso da 5.ª Sinfonia de Beethoven, teve a contribuição de Rui Veloso e Jony Galvão, para além do tema "O Malandro" de Paulo de Carvalho, que vinha do seu álbum de 1981 "Cabra Cega". 



A "Crónica dos Bons Malandros" também já foi adaptada como peça musical em 2011, e como série da RTP em 2020. Marco Delgado, Maria João Bastos, José Raposo, Adriano Carvalho, Rui Unas, Manuel Marques e Joana Pais de Brito foram respetivamente Renato, Marlene, Pedro, Flávio, Silvino, Arnaldo e Adelaide.  

Trailers: 



Resenha no podcast VHS:


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