Tempo para recordar mais uma edição do Festival da Eurovisão, e desta vez recuamos 45 anos até ao 22.º Festival da Eurovisão que teve lugar a 7 de Maio de 1977 no Centro de Conferências de Wembley em Londres.
Com a vitória do Reino Unido no ano transacto, graças ao clássico "Save All Your Kisses From Me" dos Brotherhood Of Man, o Festival realizava-se pela sexta vez em terra britânicas e a quarta em Londres. Inicialmente o certame estava marcado para o dia 2 de Abril, mas devido a uma greve de técnicos e operadores de câmara da BBC, foi adiado para mais de um mês depois, sendo a primeira vez que o Festival realizou-se no mês de Maio desde a edição inaugural em 1956, sendo que hoje em dia o Festival realiza-se tradicionalmente nesse mês. A apresentadora foi Angela Rippon.
A greve e o adiamento fez com que a transmissão fosse afectada por vários problemas técnicos como legendas dos países e dos títulos das canções enviesados, planos de câmara mal enjorcados e a não exibição dos créditos finais. (Existem gravações áudio nesses momentos com o produtor Stewart Morris a gritar impropérios que fariam corar um Gordon Ramsey!) Além disso, a parte das votações foi repleta de erros, quer da apresentadora Angela Rippon, quer dos operadores do quadro de pontuação, quer ainda de alguns porta-vozes (como o francês que pontuou doze países em vez dos dez estipulados).
E segundo o livro "Portugal 12 pts" de João Carlos Calixto e Jorge Mongorrinha, as delegações portuguesa e austríaca ficaram instaladas num hotel perto do aeroporto de Heathrow enquanto as dos restantes países ficaram no centro da cidade. Isto porque as canções dos dois países foram consideradas como tendo "influências socialistas".
Por outro lado, foi uma edição com um belíssimo palco e um elevado nível de qualidade nas canções e com muitos artistas que já tinham participado ou voltariam a participar no Festival da Eurovisão. Pela primeira vez, o quadro das pontuações tinha as bandeiras dos países concorrentes, algo que é hoje habitual.
Participaram dezoito países, os mesmos do ano anterior, com a saída da Jugoslávia e o regresso da Suécia. A Tunísia esteve quase para participar e chegou a ser sorteada para actuar em quarto lugar mas acabaria por desistir. A partir deste ano, voltou a ser obrigatório os países cantarem na sua língua nacional (ou uma das) mas a Alemanha e a Bélgica foram autorizadas a participar com canções em inglês, porque já tinham sido escolhidas antes da reintrodução da regra.
Como é habitual, analisaremos cada canção por ordem inversa de classificação. (Os nomes dos países em negrito têm links com o vídeo da respectiva canção.)
Forbes (Suécia)
Após ausência no ano anterior (em parte devido aos encargos de ter organizado o certame de 1975), a Suécia regressou ao Festival mas não foi um retorno feliz pois ficou no último lugar com apenas 2 pontos, até ao momento a única vez que o país ficou isolado na cauda da tabela. A canção "Beatles" era obviamente homenagem da banda Forbes ao lendário quarteto de Liverpool, mencionando as canções "Yesterday" e "Hard Day's Night" e os nomes dos quatro membros da banda, mas não convenceu ninguém a não ser o juri alemão que deu à Suécia os seus dois únicos pontos.
Schmetterlinge (Áustria)
A Áustria ficou no penúltimo lugar com aquela que era sem dúvida a proposta mais ousada. Sob o véu de um ritmo alegre e de um refrão pegadiço, o tema "Boom Boom Boomerang" escondia uma letra que criticava a indústria musical, mais interessada em fazer dinheiro do que em promover música de qualidade, um argumento que pelos vistos nunca deixou de ser relevante. A canção foi defendida pelo grupo Schmetterlinge que incluía dois membros do grupo The Milestones, Beatrix Neudlinger e Günter Grosslercher, que tinha representado o país em 1972. Os membros masculinos do grupo tinham na parte de trás das cabeças umas máscaras que, aliadas à parte de trás dos seus fatos, se convertiam em bonecos que se mexiam com a coreografia. Mas esta ousadia não foi muito do agrado dos júris europeus que atribuíram à Áustria apenas onze pontos. (Também me pergunto se esta canção também não era uma crítica aos ABBA que tinham uma canção com um título parecido e que nunca se livraram das críticas de serem demasiado comerciais.)
Anne-Marie B. (Luxemburgo)
Igualmente ousada, mas por outros motivos, foi a canção do Luxemburgo. Como se pode calcular, "Frère Jacques" era inspirada na famosa cantilena infantil "Frére Jacques, Frére Jacques/ Dormez-vous? Dormez-vous?" mas que na intensa batida disco e na interpretação sensual de Anne-Marie B. ganhava contornos bem mais adultos. O Luxemburgo quedar-se-ia pelo 16.º lugar com 17 pontos. Anne-Marie Besse obteve alguma notoriedade como actriz, e o seu currículo inclui o filme "Max, Meu Amor" de Nagisa Oshima.
A Noruega apostou na jovem Anita Skorgan, que com apenas 18 anos, já somava grande sucesso no seu país. Em Londres, Skorgan cantou "Casanova" onde lamentava o desaparecimento do seu amado, cuja reputação de conquistador igualava àquela do célebre aventureiro veneziano do título. Nesta edição do Festival não houve postcards entre as actuações dos países, com a realização a focar em vez disso a filmar a assistência presente em Wembley. Segundo consta, a BBC planeou usar imagens dos diferentes representantes durante a festa de recepção às delegações participantes num famoso clube noturno londrino como postcards mas tal não aconteceu: a justificação oficial foi a de que muito do material filmado ficou inutilizável parte das imagens que foram exibidas durante o intervalo, mas também se disse que foi devido a um protesto da televisão norueguesa por conter imagens de Anita Skorgan a consumir álcool, quando ainda não estava na idade legal para tal na Noruega. Seja como for, esta foi apenas a primeira de várias vezes que Anita Skorgan participou na Eurovisão pelas cores norueguesas tendo regressado em 1979 e 1982, fazendo parte do coro em 1981 e 1983 e como letrista da canção de 1988. Nos anos 90, Skorgan foi a voz norueguesa das protagonistas dos filmes "Pocahontas" e "Anastasia".
Os Amigos (Portugal)
O Festival RTP da Canção de 1977 foi uma edição bastante singular, pois pela única vez, cada canção tinha duas versões diferentes em competição e o vencedor foi escolhido através de votos por via postal, mediante cupões fornecidos pela imprensa da altura. As sete canções foram "Canção Sem Grades", interpretada por Teresa Silva Carvalho e por José Freire; "O Que Custar", interpretada pelos Green Windows e pelo Quarteto 1111; "Férias", interpretada pelo Grupo Férias e por Paco Bandeira; "A Flor E O Fruto", interpretada pelo grupo Fantástica Aventura e pelo Conjunto Maria Albertina; "Fim De Estação", interpretada pelos Bric-À-Brac e por Vera Mónica e Carlos Queiróz (não o treinador, mas sim o irmão de Florbela); "Rita Rita Limão", interpretada pelos Green Windows e pelo duo Cara Ou Coroa (Joel Branco e Mafalda Drummond); e "Portugal No Coração" interpretado pelos Gemini e pelo grupo Os Amigos, composto por Paulo de Carvalho, Fernando Tordo, Edmundo Silva, Ana Bola, Luísa Basto e Fernanda Piçarra. E com mais de 60 mil votos, a vitória foi para Os Amigos que assim representariam Portugal em Londres, dando-se assim o regresso de Fernando Tordo e Paulo de Carvalho à Eurovisão após terem participado respectivamente em 1973 e 1974. "Portugal No Coração" é uma canção muito filha do seu tempo, com a letra reflectindo sobre a situação do nosso país na altura, ainda a digerir a ressaca da revolução de 1974 e o que fazer com a recém-adquirida liberdade, e incerto sobre qual o caminho a seguir no futuro.
Agora tenho de ser sincero: este é a única edição do Festival da Eurovisão em que a canção portuguesa é aquela que eu gosto menos. Não que ache que a canção nesta versão seja má, simplesmente acho que neste ano todos os outros países tinham canções melhores. Além disso, prefiro a versão dos Gemini de "Portugal No Coração", acho que a melhor opção teria sido a versão dos Green Windows de "Rita Rita Limão" e pergunto-me que a escolha do público por Os Amigos teve sobretudo a ver com o star power dos nomes envolvidos (aos quais se juntava Ary dos Santos como autor da letra). Também não gosto dos arranjos da orquestra com ritmos disco na versão interpretada ao vivo. No Festival da Eurovisão, Portugal (No Coração) obteve 6 pontos da França, 4 da Suíça, 3 da Itália, 2 do Mónaco e dos Países Baixos e 1 da Alemanha.
Mia Martini (Itália)
Mia Martini, nome artístico de Domenica Berté, foi a representante de Itália com "Libera", um tema disco que falava sobre a liberdade no feminino, liberdades que ainda hoje são negadas a algumas mulheres. Neste ano, a Itália ficou em 13.º lugar com 33 pontos. Mia Martini regressaria à Eurovisão em 1992 com um ainda melhor resultado mas infelizmente faleceu a 13 de Maio de 1995 (curiosamente o dia do Festival da Eurovisão desse ano) com apenas 47 anos.
Heddy Lester (Países Baixos)
Os Países Baixos ficaram em 12.º lugar com 35 pontos, mas apesar do resultado mediano, já vi muitos fãs eurovisivos holandeses afirmarem que esta é uma das canções eurovisivas do país mais amadas de sempre, que miúdos e graúdos sabem cantar de cor. "De Mallemolen" ("o carrossel") foi interpretado por Heddy Lester, cujo vestido estava estruturado como uma túlipa. Embora tenha começado como cantora nos anos 70, nos anos seguintes Heddy Lester fez carreira sobretudo como actriz de teatro.
Ilanit (Israel)
Depois de em 1973 ter sido a intérprete da primeira canção de Israel no Festival da Eurovisão, Ilanit Tzakh regressou ao certame para defender o tema "Ahava Hi Shir Lishnayim" ("o amor é uma canção para dois") ficando em 11.º lugar com 49 pontos. Nascida em Telavive no ano anterior à fundação do Estado de Israel, Ilanit passou a infância no Brasil antes de regressar ao seu país natal em 1960. Durante anos, circulou o mito de que Ilanit estaria usar um colete anti-balas debaixo do vestido durante a sua actuação numa ou em ambas das suas participações eurovisivas, mas a cantora sempre negou.
Monica Aspelund (Finlândia)
Na posição acima com mais um ponto ficou a Finlândia com a canção "Lapponia" na voz de Monica Aspelund. Como é evidente, a canção era sobre a célebre região finlandesa da Lapónia, a maior e mais setentrional do país, promovida desde os anos 40 como sendo a terra do Pai Natal. A canção agradou particularmente ao júri irlandês que lhe deu os 12 pontos, e sendo a Irlanda o primeiro país a votar, foi a única vez que Finlândia esteve em qualquer dado momento em primeiro lugar na classificação até à sua vitória retumbante em 2006. Em 1983, Ami Aspelund, irmã de Monica, foi a representante finlandesa na Eurovisão.
Micky (Espanha)
A Espanha ficou em nono lugar com 52 pontos, sendo representada por Miguel Carreño a.k.a, Micky e o tema "Enseñame A Cantar". Tratava-se de um canção bem-disposto que bem podia ser da banda sonora de um western-spaghetti, onde as três cantoras de coro em coreografia sincronizada, uma simpática tocadora de banjo e um senhor que soprava numa espécie de bilha não deixaram Micky brilhar sozinho.
Silver Convention (Alemanha)
A Alemanha fez-se representar pelo trio germano-americano Silver Convention, na altura formado Ramona Wulf, Rhonda Heath e Penny McLean. O grupo tinha tido bastante sucesso internacional nos anos anteriores, nomeadamente com o tema de 1975 "Fly Robin Fly", que chegou ao n.º1 do top americano e canadiano e ganhou um Grammy. Em Londres, interpretaram o tema "Telegram" que ficou em oitavo lugar com 55 pontos. Posteriormente, Rhonda Heath também esteve presente na Eurovisão tocando nas teclas nas actuações da Áustria em 1985 e da Alemanha em 1994.
Dream Express (Bélgica)
As irmãs Bianca, Patricia e Stella Maessen tinham representado os Países Baixos em 1970 sob o nome de The Hearts Of Soul, e agora regressavam pela Bélgica, onde residiam desde 1973, em conjunto com o compositor Luc Smets como o grupo Dream Express com "A Million In One, Two, Three" que ficou em sétimo lugar com 69 pontos. O tema tinha sido escrito por Smets que viria mais tarde a casar com Bianca. Stella voltou a representar a Bélgica na Eurovisão em 1982. Infelizmente, Patricia Maessen faleceu em 1996, com somente 44 anos, na consequência de um ataque cardíaco. Em 2010, Bianca, Stella e uma quarta irmã, Doreen, lançaram um novo single como The Hearts Of Soul.
Pepe Lienhard Band (Suíça)
A Suíça foi representada pela canção "Swiss Lady" pela Pepe Lienhard Band, ficando em sexto lugar com 71 pontos. Este é capaz de ser o tema mais suíço de sempre na Eurovisão, não só pelo título, mas pela sonoridade que bem que podia fazer parte da série da "Heidi", não faltando sequer uma das famosas trompas alpinas. O vocalista principal, Pino Gasparini, voltaria a representar a Suíça em 1985, em dueto com Mariela Ferré.
Pascalis, Marianna, Robert & Bessy (Grécia)
Na sua terceira participação, a Grécia alcançou o quinto lugar com 92 pontos, um dos melhores resultados de sempre do país, igualado em 1992 e apenas superado pela vitória em 2005 e os terceiros lugares de 2001 e 2008. O quarteto composto por Pascalis Arbanitidis, Marianna Tolli, Robert Williams e Bessy Argiraki interpretou "Mathema Solfege" ("lição de solfejo"), onde aliás o refrão era apenas composto por notas musicais. Por curiosidade, o single seguinte do grupo foi "I Love, I Love, I Love You", que é nada menos que a versão original de "Eu Tenho Dois Amores".
Michèle Torr (Mónaco)
A cantora francesa Michèle Torr tinha representado o Luxemburgo em 1966 e agora voltava onze anos mais tarde, desta vez pelas cores do Mónaco. "Une Petite Française" era uma canção semiautobiográfica, onde Torr recordava as suas origens da Provença e a sua ida para Paris ainda adolescente para seguir uma carreira musical, mas também reafirmava a sua convicção de que não era uma vedeta de capa de revista. A canção monegasca ficou em quarto lugar com 96 pontos, incluindo 12 pontos da Itália e da Grécia.
The Swarbriggs Plus Two (Irlanda)
Dois anos depois, os irmãos Tommy e Jimmy Swarbrigg voltavam a representar a Irlanda, desta vez acompanhados por Nicola Kerr e Alma Carroll. Sob o nome de The Swarbriggs Plus Two, os quatro cantaram "It's Nice To Be In Love Again" e ficaram em terceiro lugar com 119 pontos, com quatro países a atribuirem a pontuação máxima.
Mike Moran e Lynsey De Paul (Reino Unido)
Durante a primeira metade da votação parecia que o Reino Unido estava encaminhado para uma nova vitória, mas apesar de ser o país que recebeu 12 pontos de mais países (seis, incluindo Portugal) ficou pela décima vez em segundo lugar com 121 pontos, com "Rock Bottom" interpretado em dueto por Lynsey De Paul e Mike Moran. A loiríssima Lynsey De Paul tinha tido vários sucessos desde que iniciou a sua carreira como intérprete em 1972 como o hit "Sugar Me". Moran e De Paul escreveram a canção juntos e interpretaram tocando de costas um para o outro. Já o orquestrador Ronnie Hazelhurst surgiu com um chapéu de côco e uma batuta em forma de guarda-chuva. Lynsey De Paul, cuja lista de namoros incluiu nomes como Ringo Starr, Dudley Moore, Sean Connery e George Best, faleceu em 2014 aos 66 anos. Mike Moran tem composto música para filmes, televisão, teatro e até jogos de vídeo.
Marie-Myriam (França)
Com 136 pontos, a França alcançou a sua quinta vitória, alcançando então o recorde do país com mais triunfos. (No entanto, em 2022, esta continua a ser a sua última vitória.) Marie-Myriam, que completava 20 anos no dia seguinte, interpretou "L'oiseau Et L'enfant" que rapidamente se tornou mais um grande clássico da Eurovisão. Mas esta vitória gaulesa foi também um pouco portuguesa já que Marie-Myriam, que nasceu em Kananga na actual República Democrática do Congo, tinha o apelido Lopes, os seus pais eram naturais de Braga e o português era a sua língua materna. Aliás, o português foi uma das cinco línguas em que gravou "L'oiseau Et L'enfant" (sob o título "A Ave E A Infância"). Marie-Myriam tem continuado ligada à Eurovisão tendo sido várias vezes a porta-voz dos votos da França e aparecendo na gala dos 50 anos da Eurovisão em 2005. Eu já a vi actuar em Setúbal no Eurovision Live Concert.
Durante muitos anos, o triunfo de Marie-Myriam foi o mais parecido que tivémos com uma vitória portuguesa na Eurovisão até que quarenta anos mais tarde, veio a confirmação de que uma vitória simbólica não se compara a uma vitória real…
Festival da Eurovisão 1977 (comentários em inglês):
O comentador português de serviço foi o saudoso jornalista da RTP José Côrte-Real e a porta-voz do júri português foi a Ana Zanatti.
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