Hoje parece a coisa mais absurda do mundo, mas durante muito tempo acreditava-se que uma mulher, ao praticar corrida, estava a prejudicar a saúde. Não sem muita misoginia e presunção, nos anos 20 a comunidade médica era largamente da opinião de que entre outras consequências nefastas, mulheres que corriam teriam mais dificuldade em ter filhos ou envelheciam mais cedo.
Daí que a estreia do atletismo feminino nos Jogos Olímpicos de 1928 em Amesterdão não foi vista com muito bons olhos e, à parte uma atribulada prova de 800m nessa mesma edição, até 1960 as mulheres não correram mais que 200m em Jogos Olímpicos. E em 1980, a prova olímpica de maior distância ainda foram os 1500m.
Mas entretanto, as corridas femininas de longa distância já começavam a afirmar-se solidamente no panorama desportivo e desde os anos 70 que as mais famosas maratonas do mundo, como Boston e Nova Iorque, já incluíam a vertente feminina. Daí que se impunha que a prova feminina da maratona fizesse parte do programa dos Jogos Olímpicos de 1984.
Reza a história que se pode dizer que a primeira mulher maratonista olímpica foi a grega Stamatha Revithi. Impedida de participar na prova da maratona nos primeiros Jogos Olímpicos da Era Moderna em Atenas em 1896, nos quais apenas competiram homens, Revithi decidiu correr o mesmo percurso da primeira maratona olímpica no dia seguinte ao da prova oficial e apesar de ter parado várias vezes pelo caminho, chegou ao fim da corrida após cinco horas. Mas pelo menos, fez o percurso, o que não se pôde dizer de sete dos corredores da prova masculina.
88 anos depois, a primeira maratona olímpica feminina teve lugar no dia 5 de Agosto de 1984, com cinquenta atletas de 28 países na linha de partida. Para muita gente, o simples facto de tal prova acontecer foi motivo de grande emoção e a organização prestou as devidas honras no início da prova, com uma pequena cerimónia onde as atletas entraram no estádio atrás da bandeira do seu respectivo país. Por Portugal, estavam presentes Rosa Mota, Rita Borralho e Conceição Ferreira.
Rosa Mota, campeã europeia da maratona em 1982 em Atenas (quando nunca antes tinha corrido mais de 20 quilómetros, nem sequer em treino!), era uma das candidatas ao pódio. Mas as principais favoritas eram a americana Joan Benoit, recordista mundial da distância, e a norueguesa Grete Waitz, campeã mundial em 1983. Havia ainda que contar com a também norueguesa Ingrid Kristiansen, recordista mundial dos 10000 metros, a italiana Laura Fogli e a neozelandesa Lorraine Moller.
Joan Benoit (USA) a primeira campeã olímpica da maratona |
No entanto, a vitória ficou decidida bem cedo, com Joan Benoit a arrancar isolada da frente da corrida aos 14 minutos, tomando a liderança que nunca mais perdeu. Pensando que a americana tinha cometido um enorme risco em atacar tão cedo e que não tardaria ceder, nenhuma das outras corredoras se atreveu a ir com ela. Mas foi mesmo Benoit foi a primeira a cortar a meta, com o boné branco que usara ao longo da corrida numa mão e uma bandeira americana na outra, com o tempo de 2 horas, 24 minutos e 52 segundos. Mais tarde Benoit declararia que ao entrar no túnel que dava para o estádio, pensou: "A minha vida vai mudar assim que eu passar este túnel."
Medalha de prata para Grete Waitz (NOR) |
Rosa Mota ganhou o bronze para Portugal |
Grete Waitz, que no dia anterior acordara com dores tão fortes nas costas que nem sequer conseguia manter-se de pé, terminou em segundo lugar, a cerca de minuto e meio de Benoit. Nos quilómetros finais, Rosa Mota conseguiu superiorizar-se a Ingrid Kristiansen para ser terceira, a apenas 39 segundos de Weitz.
No entanto, tanto quanto as três primeiras, a 37.ª classificada acabaria por fazer história na primeira maratona olímpica feminina. Vinte minutos depois de Joan Benoit, a suíça Gabriela Andersen-Schiess, então com 39 anos e a trabalhar como instrutora de esqui no estado americano do Idaho, entrou no estádio em sérias dificuldades, toda curvada, com o braço esquerdo suspenso e a perna direita rígida. Toda a gente presente no estádio ficou indecisa entre encorajar a atleta a terminar a prova ou pedir para que ela fosse auxiliada, mesmo que isso lhe custasse a desclassificação. Os membros do corpo médico repararam que ela transpirava abundantemente, o que era um bom sinal, e deixaram-na continuar. Sob a enorme ovação do público, a helvética terminou a volta final ao estádio em cinco minutos e 44 segundos, para cair nos braços dos socorristas que a esperavam na linha da meta.
Apesar do seu calvário, o estado de Andersen-Schiess não era tão grave como se pensava e recuperou rapidamente, recebendo alta médica ao fim de apenas duas horas.
E que não se pense que Gabriela Andersen-Schiess era uma atleta incipiente, já que em 1983 vencera duas maratonas nos Estados Unidos, em Sacramento e Mineápolis, e era a recordista nacional dos 10000m. Apenas cinco semanas depois da maratona, a helvética participou numa corrida no estado do Utah onde parte do percurso era feito em corrida e outra a cavalo. A atleta referiria mais tarde que o seu estado deveu-se em parte por ter falhado o último posto de reabastecimento de água, que a deixou a sofrer as consequências de desidratação naquele dia de intenso calor. Desde então, foi aprovada uma regra que permite ao corpo médico tocarem nos atletas para prestar assistência sem que estes sejam desclassificados.
Curiosamente, as duas atletas que terminaram a corrida logo a seguir a Andersen-Schiess foram as portuguesas Rita Borralho e Conceição Ferreira que tinham feito todo o percurso juntas e que cruzaram a meta de mãos dadas.
Outra atleta que passou por tormentos semelhantes aos de Andersen-Schiess foi a neozelandesa Anne Audain. Sentindo-se mal aos 27km devido a desidratação e não encontrando nenhum posto de assistência médica, acabou por desmaiar antes de poder terminar a prova. Felizmente, desmaiou mesmo ao pé de dois bombeiros que assistiam à corrida e que lhe prestaram os devidos socorros e levaram-na para um hospital.
A brasileira Eleonora Mendonça foi a última atleta a concluir a prova, em 44.º lugar, quase 28 minutos depois de Joan Benoit. Um quadragésima quinta corredora poderia também tê-lo feito, mas foi tramada pela sua lentidão. Leda Diaz das Honduras ficou desde muito cedo bem para trás na prova: aos 20km, já estava a mais de 27 minutos das restantes atletas. Mais preocupados em retomar o trânsito em Los Angeles e em cumprir os horários das provas do que com o ideal olímpico de que o importante é participar e chegar ao fim da corrida, os membros da organização da prova convenceram a hondurenha a desistir.
A brasileira Eleonora Mendonça foi a última atleta a concluir a prova, em 44.º lugar, quase 28 minutos depois de Joan Benoit. Um quadragésima quinta corredora poderia também tê-lo feito, mas foi tramada pela sua lentidão. Leda Diaz das Honduras ficou desde muito cedo bem para trás na prova: aos 20km, já estava a mais de 27 minutos das restantes atletas. Mais preocupados em retomar o trânsito em Los Angeles e em cumprir os horários das provas do que com o ideal olímpico de que o importante é participar e chegar ao fim da corrida, os membros da organização da prova convenceram a hondurenha a desistir.
Voltando às três primeiras, o pódio da primeira maratona olímpica feminina acabou por ser altamente emblemático ao acolher três das melhores maratonistas de todos os tempos: Joan Benoit com o ouro, Grete Waitz (infelizmente falecida em 2011) com a prata e Rosa Mota com o bronze. A "menina da Foz" tornava-se assim a primeira mulher portuguesa a ganhar uma medalha olímpica, com o seu feito a inspirar as medalhas de bronze de António Leitão nos 5000m e de ouro de Carlos Lopes na maratona masculina, fazendo dos Jogos de Los Angeles uns dos melhores de sempre para as cores nacionais. Rosa Mota também transportou a bandeira portuguesa na cerimónia de encerramento.
E claro está, nos quatro anos que se seguiram, Rosa Mota foi indiscutivelmente a melhor maratonista do mundo, enchendo Portugal de orgulho com as suas conquistas que culminaram, já se sabe, na medalha de ouro dos Jogos Olímpicos de 1988 em Seul.
A prova da maratona feminina de 1984 no filme "16 Dias de Glória":
Gabriela Andersen-Schiess revive a sua prova:
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