Os 14.ºs Jogos Olímpicos de Inverno decorreram entre 8 a 19 de Fevereiro de 1984 em Sarajevo, então parte da República Socialista da Jugoslávia (actualmente capital da Bósnia-Herzegovina). 1272 atletas de 49 países em 10 desportos ao longo de 12 dias de competição. Infelizmente poucos anos depois, as infraestruturas destes Jogos Olímpicos seriam reduzidas a cinzas e escombros devido à guerra que assolaria a Bósnia-Herzegovina nos anos 90. Inclusivamente, a pista de bobsled foi utilizado por snipers sérvios como base de operações e chegou a haver execuções nos mesmos pódios que outrora honraram os atletas que aí competiram.
Entre os atletas que se destacaram nesses Jogos estiveram a deslumbrante patinadora da RDA Katarina Witt que ganhou o primeiro dos seus dois títulos olímpicos, os gémeos americanos Phil e Steve Mahre que foram respectivamente primeiro e segundo classificados na prova de slalom no esqui alpino, a finlandesa Marija Liisa Hamalainen venceu as três provas individuais femininas de esqui de fundo e o esquiador esloveno Jure Franko venceu a primeira medalha de sempre da Jugoslávia em Jogos Olímpicos de Inverno com a prata conquistada no slalom gigante.
Mas o ponto alto dos Jogos Olímpicos de Sarajevo foi sem dúvida aquele protagonizado pelos britânicos Jayne Torvill e Christopher Dean, campeões olímpicos da prova de dança da patinagem artística. (Integrada no programa olímpica desde 1976, a prova de dança distingue-se da prova de pares pelos seus movimentos de dança e por serem proibidos saltos e lançamentos.) Naturais de Nottingham, ambos começaram no desporto com outros pares até serem juntados pela treinadora Janet Swarbridge em 1975.
A dupla ficou em quinto lugar nos Jogos Olímpicos de Inverno de 1980 e foi aí que decidiram levar mais a sério o desporto, deixando os seus respectivos trabalhos: ele como polícia, ela como secretária numa companhia de seguros. O esforço rapidamente deu frutos, vencendo os Campeonatos do Mundo de 1981, 1982 e 1983 e acabando com a hegemonia soviética na disciplina.
Mas para o ano olímpico de 1984, Dean e Torvill não só apostavam em ganhar o ouro como em fazer história. Adeptos de esquemas de dança que apelavam à narrativa temática, o seu programa livre para essa época foi feito ao som do "Bolero" de Maurice Ravel, originalmente composto em 1928 e que se tornou o opus mais conhecido do compositor francês. A obra gozava na altura de grande popularidade desde o seu uso no filme de 1979 "10 - Uma Mulher De Sonho" com Bo Derek (cuja personagem refere o "Bolero" como "a música mais erótica de sempre"), elevando os valores do copyright da peça em vários países. (Eu também recordo-me da peça ser utilizada nos anúncios aos electrodomésticos Balay em finais dos anos 80.)
Para o programa de Torvill e Dean, Richard Hartley condensou os 17 minutos do "Bolero" numa versão de 4 minutos e 28 segundos. Como as regras exigiam que os programas livres da prova de dança no gelo tivessem a duração máxima de 4 minutos e 10 segundos e não havia maneira de retirar os 18 segundos a mais sem comprometer a qualidade da versão de Hartley, Christopher Dean consultou os regulamentos e descobriu uma maneira de dar volta à situação: esses 4 minutos e 10 segundos só começavam a contar a partir do momento em que um ou os dois patinadores colocam o patim no gelo - e como tal, a dupla começaria a sua prova dançando de joelhos durante os primeiros 18 segundos.
Em Sarajevo, Torvill e Dean optaram por treinar de manhã cedo quando não estava mais ninguém no ringue de patinagem Zetra para criar uma onda de mistério face aos rivais e espectadores. Mas certa vez, após o fim do ensaio do programa do "Bolero" às 6 da manhã os dois ouviram aplausos: os empregados de limpeza do ringue tinham parado de limpar as bancadas e assistiam a tudo maravilhados. Como maravilhados ficaram todos aqueles que no dia de competição assistiram ao "Bolero" tanto na Zetra como pela televisão, cientes que estavam a assistir a uma das provas mais icónicas de sempre da história do desporto. E os nove júris foram igualmente convencidos atribuindo a pontuação máxima de 6.0 na nota artística (três 6.0 e seis 5.9 na nota técnica).
Christopher Dean e Jayne Torvill conquistavam o ouro olímpicos e foram elevados como os novos heróis britânicos, tornado-se os terceiros mais ilustres naturais de Nottingham depois de Robin dos Bosques e do escritor D.H. Lawrence. A sua prova olímpica foi assistida na televisão britânica por 24 milhões de telespectadores e um disco que continha o arranjo de Richard Hartley para o "Bolero" de Ravel interpretado pela Michael Reed Orchestra, bem como o "Paso Doble" do programa curto e outras músicas usadas em provas anteriores da dupla, chegou ao nono lugar do top britânico.
Um mês após Sarajevo, Torvill e Dean conquistaram o quarto título mundial em Ottawa e ainda em 1984 enveredaram pelo circuito de provas e exibições profissionais. Em 1992, Christopher Dean foi o coreógrafo dos irmãos franceses Isabelle e Paul Duchesnay (que na altura eram sua esposa e seu cunhado) que conquistaram a medalha de prata nos Jogos Olímpicos de Inverno em Albertville.
Em 1994, beneficiando de uma alteração nas regras que abriam portas à participação de atletas profissionais nos Jogos Olímpicos, a dupla decidiu regressar à competição rumo ao Jogos de Lillehammer, onde acabariam por ganhar a medalha de bronze, além de um quarto título europeu.
Jayne Torville e Christopher Dean continuaram a patinar juntos até 1998, quando decidiram tomar rumos distintos, treinando e coreografando em separado.
Mas em 2006, os dois não resistiram ao convite do canal britânico ITV para o programa "Dancing On Ice", onde à semelhança de programas como "Dança Com As Estrelas", juntavam celebridades e atletas de patinagem em coreografias no gelo, para treinar e coreografar os esquemas exibidos no programa e também actuarem novamente juntos. O programa durou sete temporadas até 2014.
Em 2014, 30 anos após o triunfo olímpico, Torvill e Dean regressaram a Sarajevo para dançar o "Bolero" no recém-reconstruído pavilhão de gelo.
Sem comentários:
Enviar um comentário