por Paulo Neto
Na semana passada, o actor Nuno Melo faleceu aos 55 anos, vítima de cancro. Para trás deixou mais de trinta anos de carreira no cinema, teatro e televisão. No pequeno ecrã desempenhou uma mão-cheia de personagens memoráveis como o ingénuo Joaquim em "Alentejo Sem Lei", o ambíguo porteiro Alverca em "Casino Royal", o filho Alberto em "Camilo & Filho" e até impressionou no outro lado do Atlântico como o taxista Constantino na telenovela brasileira "Senhora do Destino". Porém, a sua personagem mais marcante em televisão será porventura o Caniço da telenovela "Chuva Na Areia", sobretudo pelo seu fim trágico que chocou o país nos idos de 1985.
"Chuva Na Areia" continua a ser um caso bastante atípico de entre todas as telenovelas produzidas no nosso país. Primeiro, porque nem sequer foi definida e promovida como uma telenovela mas sim como um "teleromance", sobretudo por vontade do autor, Luís de Sttau Monteiro, já que era uma adaptação de um romance inacabado da sua autoria, de título "Agarra o Verão, Guida, Agarra o Verão!". Segundo, porque teve somente 85 episódios, exibidos na RTP entre 7 de Janeiro e 3 de Maio de 1985. Terceiro, porque foi a primeira telenovela portuguesa de época, com a sua acção a decorrer nos anos 60 (se não estou em erro, apenas a telenovela "Anjo Meu", exibida na TVI em 2011, é a única outra telenovela portuguesa em que acção passava-se essencialmente numa época anterior à actualidade) . Quarto, porque a narrativa rompia em vários aspectos com aquela existente nas outras telenovelas portuguesas até então ("Vila Faia" e "Origens").
"Chuva Na Areia" foi também uma das raras telenovelas produzidas integralmente pela RTP sem recurso a outra produtora, tendo mesmo construído em Tróia uma cidade cenográfica para as filmagens.
A acção da telenovela decorre num verão algures na década de 60, na fictícia aldeia piscatória de Vila Nova da Galé. Embora o Estado Novo ainda exerça toda a sua autoridade, Portugal começa a ser promovido como um atractivo destino turístico para os europeus e como tal, a população da aldeia assiste entre a apreensão e a expectativa, à chegada de turistas estrangeiros e às intenções de progresso por parte das autoridades que passará pela construção de sofisticados complexos hoteleiros. Paralelamente, existe uma trama de contrabando e os dramas pessoais de várias personagens. Não havendo um protagonista evidente, a trama focava-se sobretudo em quatro personagens: Guida (Natália Luiza), a protagonista do romance, uma jovem que estuda em Lisboa e vem passar férias à sua aldeia natal e deixa-se encantar pelos ventos de liberdade trazidos pelos turistas estrangeiros, chegando a envolver-se com um francês; Nunes (José Viana), o pai de Guida e dono da pensão local, preocupado tanto com as desventuras da filha como pela ameaça da construção de um hotel de luxo lhe arruinar o negócio; o tenente Ferreira (Rui Mendes), o pacato chefe de polícia que não se entende com a sua ambiciosa e enfastiada esposa Odete (Alina Vaz), que não suporta viver em Vila Nova de Galé e que acaba por trair o marido com Vilela (Henrique Viana), vendedor de terrenos para construção; e Caniço, rapaz pobre e desajustado que além estar envolvido nas manobras de contrabando, prostitui-se para mulheres e homens, como a americana Mabel (Maria Dulce) e o alemão neo-nazi Herr Neuber (Carlos Wallenstein), caminhando a passos largos para um cruel destino que nem o amor de Ana do Mar (Filipa Cabaço) consegue travar.
Entre outras personagens destacam-se o casal Helena (Mariana Ruy Monteiro) e António Fontes (Virgílio Teixeira), veraneantes de longa data em Vila Nova da Galé; Leopoldo (Rui Luís) o dono da taberna onde se reúne a quadrilha contrabandista liderada por Peralta (Mário Segredas) que, farto dos constante desrespeito dos clientes, finalmente impõe-se à força; Mimoso (Rogério Paulo), cujo filho é perseguido pela PIDE; Malaquias (Luís Pinhão) que desespera com o pacto de silêncio com que a mulher Tiazinha (Maria Cristina) lhe vota após uma discussão e que durará até à morte desta; Augusta (Manuela Maria), esposa de Nunes e mãe de Guida; e Esteves (Armando Cortez) que não permite que a sua mulher Amélia (Mariana Vilar) saia à rua mas que não esconde o seu affair com a espanhola Paloma (Manuela Carona), que lhe vai trazer consequências dolorosas. Do elenco também fizeram parte nomes como Adelaide João, António Lopes Ribeiro, António Rama, Carlos Daniel, Carlos César, Curado Ribeiro, Eduardo Viana, Filomena Gonçalves, Laura Soveral, Luísa Barbosa e Manuel Cavaco.
Claro está que a cena pela qual "Chuva Na Areia" ficou na memória foi aquela em que Caniço deambulava desvairado e ensanguentado pela praia rumo à sua morte depois de ter cortado o seu próprio sexo, num acesso de vergonha pelos seus comportamentos. Na altura eu só tinha cinco anos e não tinha idade para perceber bem a trama da novela, mas recordo-me bem dessa cena ainda que só mais tarde é que percebi o motivo daquele sangue todo. E foi daqueles casos em que no dia seguinte, não se falava de outra coisa. Além das alusões à mutilação genital e a ligações homossexuais, "Chuva Na Areia" também teve outras particularidade muito à frente para época como cenas em topless na praia e o recurso a palavrões. Por exemplo, Odete referia-se a Vila Nova de Galé como "esta merda de terra" e Peralta comparava o vinho da taberna de Leopoldo a "mijo de burra".
A telenovela terminava fazendo jus ao título com Guida a correr para a praia enquanto começa a chover na areia, assinalando o fim do Verão.
"Chuva Na Areia" foi reposta pela RTP em 1989 no horário da tarde e já foi reexibida diversas vezes na RTP Memória. Na altura da sua primeira exibição, foi publicada uma revista sobre a telenovela e o disco da sua banda sonora, com temas instrumentais e canções interpretadas por Carlos do Carmo, Teresa Silva Carvalho, Lena D'Água, Fernando Girão e Vicente da Câmara.
Genérico(1):
Excerto:
1.º episódio
Agradecimento ao site Brinca Brincando por muita da informação reunida para este texto. Gostaria também de sugerir este excelente artigo sobre a personagem do Caniço da autoria de Ricardo Martins Pereira para o site NewInTown.
NOTA:
(1) - Genérico realizado por Carlos Barradas ("Arco Íris", "Jáquitá", "Histórias Fantásticas") que também deu à geração croma o assustador genérico do "Tempo dos Mais Novos".
NOTA:
(1) - Genérico realizado por Carlos Barradas ("Arco Íris", "Jáquitá", "Histórias Fantásticas") que também deu à geração croma o assustador genérico do "Tempo dos Mais Novos".
É de louvar que tu conheças tantas coisas sobre a história do audiovisual do século XX, ainda para mais tendo tu apenas vivido os últimos sete anos desse século.
ResponderEliminarSim,o Vergílio Teixeira foi um autor cujo reconhecimento ficou muito aquém daquilo que lhe era realmente devido. Ele e o António Vilar, que contracenou com a Brigitte Bardot herself, foram os percursores do Joaquim de Almeida e do Diogo Morgado em Hollywood. Isso do reconhecimento de Virgílio Teixeira apenas com a sua participação no Chuva Na Areia fez-me lembrar um cartoon brasileiro que vi no outro dia no Facebook, onde um actor moribundo espera ser recordado após a morte pela sua interpretação de Hamlet mas depois de morrer, as notícias dizem "Morreu o Tio Vavá da telenovela Paixão Tropical".
Sim, Chuva De Areia destacou-se pela sua crueza com pouco alívio cómico, cujo impacto foi bastante forte no Portugal de então. Mas talvez por isso mesmo, seja uma das melhores de sempre.
O Mário Castrim (não Crispim) era daquela facção da esquerda que via tudo o que se afastasse dessas ideologias como fascistas ou vendas ao capitalismo de direita. Só nos anos 90, já na recta final da sua vida é que refreou esses ataques, e é desse tempo que me recordo mais dele, por aquilo que ele escrevia na revista TV Mais.
Ja agora não se esqueçam do meu genérico da Chuva na Areia!
ResponderEliminarÉ uma honra tê-lo como visita na Enciclopédia, não é todos os dias que temos feedback de uma pessoa com um currículo como o seu!
ResponderEliminarE dos genéricos nacionais o da Chuva na Areia é sem dúvida dos meus favoritos, fico sempre quase hipnotizado a ver a sequência das casas que vão surgindo e as que infelizmente desaparecem. A minha terra - Olhão - está agora numa fase semelhante, os edifícios antigos históricos (e as lojas, comércio e comunidade) vão apodrecendo e desaparecendo para dar lugar a mamarrachos incaracterísticos para lucro rápido...
Cumprimentos,
David Martins
Sim, apesar de não ter mencionado no texto, sem dúvida que o genérico de Chuva Na Areia é dos mais memoráveis da ficção nacional. Mas por aqui já falámos de outro mítico genérico do Carlos: http://enciclopediadecromos.blogspot.pt/2013/09/tempo-dos-mais-novos-1983-84.html
ResponderEliminarMelhor novela portuguesa
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