sábado, 13 de junho de 2015

Chuva Na Areia (1985)

por Paulo Neto

Na semana passada, o actor Nuno Melo faleceu aos 55 anos, vítima de cancro. Para trás deixou mais de trinta anos de carreira no cinema, teatro e televisão. No pequeno ecrã desempenhou uma mão-cheia de personagens memoráveis como o ingénuo Joaquim em "Alentejo Sem Lei", o ambíguo porteiro Alverca em "Casino Royal", o filho Alberto em "Camilo & Filho" e até impressionou no outro lado do Atlântico como o taxista Constantino na telenovela brasileira "Senhora do Destino". Porém, a sua personagem mais marcante em televisão será porventura o Caniço da telenovela "Chuva Na Areia", sobretudo pelo seu fim trágico que chocou o país nos idos de 1985.




"Chuva Na Areia" continua a ser um caso bastante atípico de entre todas as telenovelas produzidas no nosso país. Primeiro, porque nem sequer foi definida e promovida como uma telenovela mas sim como um "teleromance", sobretudo por vontade do autor, Luís de Sttau Monteiro, já que era uma adaptação de um romance inacabado da sua autoria, de título "Agarra o Verão, Guida, Agarra o Verão!". Segundo, porque teve somente 85 episódios, exibidos na RTP entre 7 de Janeiro e 3 de Maio de 1985. Terceiro, porque foi a primeira telenovela portuguesa de época, com a sua acção a decorrer nos anos 60 (se não estou em erro, apenas a telenovela "Anjo Meu", exibida na TVI em 2011, é a única outra telenovela portuguesa em que acção passava-se essencialmente numa época anterior à actualidade) . Quarto, porque a narrativa rompia em vários aspectos com aquela existente nas outras telenovelas portuguesas até então ("Vila Faia" e "Origens"). 
"Chuva Na Areia" foi também uma das raras telenovelas produzidas integralmente pela RTP sem recurso a outra produtora, tendo mesmo construído em Tróia uma cidade cenográfica para as filmagens.





A acção da telenovela decorre num verão algures na década de 60, na fictícia aldeia piscatória de Vila Nova da Galé. Embora o Estado Novo ainda exerça toda a sua autoridade, Portugal começa a ser promovido como um atractivo destino turístico para os europeus e como tal, a população da aldeia assiste entre a apreensão e a expectativa, à chegada de turistas estrangeiros e às intenções de progresso por parte das autoridades que passará pela construção de sofisticados complexos hoteleiros. Paralelamente, existe uma trama de contrabando e os dramas pessoais de várias personagens. Não havendo um protagonista evidente, a trama focava-se sobretudo em quatro personagens: Guida (Natália Luiza), a protagonista do romance, uma jovem que estuda em Lisboa e vem passar férias à sua aldeia natal e deixa-se encantar pelos ventos de liberdade trazidos pelos turistas estrangeiros, chegando a envolver-se com um francês; Nunes (José Viana), o pai de Guida e dono da pensão local, preocupado tanto com as desventuras da filha como pela ameaça da construção de um hotel de luxo lhe arruinar o negócio; o tenente Ferreira (Rui Mendes), o pacato chefe de polícia que não se entende com a sua ambiciosa e enfastiada esposa Odete (Alina Vaz), que não suporta viver em Vila Nova de Galé e que acaba por trair o marido com Vilela (Henrique Viana), vendedor de terrenos para construção; e Caniço, rapaz pobre e desajustado que além estar envolvido nas manobras de contrabando, prostitui-se para mulheres e homens, como a americana Mabel (Maria Dulce) e o alemão neo-nazi Herr Neuber (Carlos Wallenstein), caminhando a passos largos para um cruel destino que nem o amor de Ana do Mar (Filipa Cabaço) consegue travar. 



Entre outras personagens destacam-se o casal Helena (Mariana Ruy Monteiro) e António Fontes (Virgílio Teixeira), veraneantes de longa data em Vila Nova da Galé; Leopoldo (Rui Luís) o dono da taberna onde se reúne a quadrilha contrabandista liderada por Peralta (Mário Segredas) que, farto dos constante desrespeito dos clientes, finalmente impõe-se à força; Mimoso (Rogério Paulo), cujo filho é perseguido pela PIDE; Malaquias (Luís Pinhão) que desespera com o pacto de silêncio com que a mulher Tiazinha (Maria Cristina) lhe vota após uma discussão e que durará até à morte desta; Augusta (Manuela Maria), esposa de Nunes e mãe de Guida; e Esteves (Armando Cortez) que não permite que a sua mulher Amélia (Mariana Vilar) saia à rua mas que não esconde o seu affair com a espanhola Paloma (Manuela Carona), que lhe vai trazer consequências dolorosas. Do elenco também fizeram parte nomes como Adelaide João, António Lopes Ribeiro, António Rama, Carlos Daniel, Carlos César, Curado Ribeiro, Eduardo Viana, Filomena Gonçalves, Laura Soveral, Luísa Barbosa e Manuel Cavaco.



Claro está que a cena pela qual "Chuva Na Areia" ficou na memória foi aquela em que Caniço deambulava desvairado e ensanguentado pela praia rumo à sua morte depois de ter cortado o seu próprio sexo, num acesso de vergonha pelos seus comportamentos. Na altura eu só tinha cinco anos e não tinha idade para perceber bem a trama da novela, mas recordo-me bem dessa cena ainda que só mais tarde é que percebi o motivo daquele sangue todo. E foi daqueles casos em que no dia seguinte, não se falava de outra coisa. Além das alusões à mutilação genital e a ligações homossexuais, "Chuva Na Areia" também teve outras particularidade muito à frente para época como cenas em topless na praia e o recurso a palavrões. Por exemplo, Odete referia-se a Vila Nova de Galé como "esta merda de terra" e Peralta comparava o vinho da taberna de Leopoldo a "mijo de burra".

A telenovela terminava fazendo jus ao título com Guida a correr para a praia enquanto começa a chover na areia, assinalando o fim do Verão. 



"Chuva Na Areia" foi reposta pela RTP em 1989 no horário da tarde e já foi reexibida diversas vezes na RTP Memória. Na altura da sua primeira exibição, foi publicada uma revista sobre a telenovela e o disco da sua banda sonora, com temas instrumentais e canções interpretadas por Carlos do Carmo, Teresa Silva Carvalho, Lena D'Água, Fernando Girão e Vicente da Câmara.




Genérico(1):



Excerto:


1.º episódio




Agradecimento ao site Brinca Brincando por muita da informação reunida para este texto. Gostaria também de sugerir este excelente artigo sobre a personagem do Caniço da autoria de Ricardo Martins Pereira para o site NewInTown.

NOTA:
(1) - Genérico realizado por Carlos Barradas ("Arco Íris", "Jáquitá", "Histórias Fantásticas") que também deu à geração croma o assustador genérico do "Tempo dos Mais Novos".

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7 comentários:

  1. Uma das melhores novelas portuguesas de sempre, ao lado da "Banqueira do Povo" de 1993, da "Roseira Brava" de 1995, e da "Vila Faia" original de 1983, que retratou com fidelidade e exactidão um período recente da história portuguesa da época, o Estado Novo.
    Um argumento excelente, cuja história acabou sem ter um final predefinido, pois a palavra "FIM" apareceu com reticências, e decerto foi a única novela a acabar assim.
    Adorei a personagem do Caniço, cuja história me impressionou, da Guida, a representação da liberdade num país amordaçado, do Velho Malaquias, dos Nunes, dos Fontes e do Tenente Ferreira, sem esquecer o Padre, desempenhado pelo grande realisador António Lopes Ribeiro, realisador do Melhor Filme Português de Sempre, na minha opinião, e esse filme foi "O Pai Tirano".
    Uma novela que fez escandaleira na sua época, pois os portugueses não estavam habituados a ver e a ouvir assuntos que eram verdadeiros tabus na nossa sociedade, E um deles foi a personagem de vilão de Carlos Wallenstein, um dos nossos melhores actores, pai de José Wallenstein, o alemão que ao mesmo tempo que era homossexual, era adepto do nazismo, e tinha cara de "esquinede", como eu digo, e como muitos dizem.
    O mais chato desta novela foi que o grande galã Virgílio Teixeira, que a minha avó, que Deus haja, adorava ver na TV, só começou a ter fama a partir desta grande novela, Nos anos 40 foi o galã por excelência do nosso cinema, tornando-se célebre em filmes fantásticos como "Fado, História d'Uma Cantadeira" de Perdigão Queiroga, com Amália Rodrigues, Vasco Santana e António Silva, "José do Telhado" de Armando de Miranda, ou "Ribatejo" de Henrique Campos, com Eunice Muñoz, Vasco Santana e Hermínia Silva.
    Foi o único artista português a pisar os palcos cinematográficos de Hollywood, e não se sabe porquê, foi totalmente menosprezado, pois os filmes dele feitos nos EUA nunca passaram em Portugal. Um deles era uma das continuações do clássico "Os Sete Magníficos" de John Sturges.
    Resultado: o nome de Virgílio Teixeira passou a ser conhecido em toda a Nação como "O Fontes da Telenovela", o que o desiludiu antes do final da vida, e torna-se vergonhoso para todos nós. Como é que é possível que com uma novela fantástica e um desempenho extraordinário, se esqueçam as obras anteriores de um actor como Virgílio Teixeira?
    Como disse Camilo de Oliveira, se o Estevam Amarante, vedeta da música portuguesa e do teatro e cinema dos anos 20 a 50, fosse actor de telenovela, toda a gente o conhecia de certeza absoluta.
    Menosprezos à parte, esta foi uma das melhores novelas de sempre, numa época em que a RTP conseguiu, com poucos recursos, realisar novelas que superam as actuais, que mesmo continuando a serem boas, com a fina flor da representação portuguesa, pecando pelo seu excessivo retrato cruel e frio do lado mais negro da nossa realidade, ocultando outros casos da realidade que não convém a ninguém ver na TV, sem momentos de descontracção e humor, e fazendo com que os telespectadores de mentalidade mais fraca não distingam a ficção da realidade, e mesmo ganhando merecidos prémios no estrangeiro, nunca conseguem, e nunca conseguirão chegar ao patamar das novelas portuguesas da RTP dos anos 80, 90 e inícios do século XXI.
    E nem sequer havia teatralidade nas novelas. Isso foi um mito implementado pelo Mário Crispim, que insultou à carga a "Vila Faia", e numa época em que a TV portuguesa estava no seu melhor, ele difamou artistas e programas de maneira excessiva, ao ponto de chamar Amália de fascista, fama que se alastrou em toda a Nação, de dizer que a Maria da Fé não sabia cantar fado, que o Fernando Farinha era um "pele vermelha" e que a Amélia Rey Colaço era uma novata.
    Digam o que disserem, esta foi uma das melhores novelas portuguesas de todos os tempos, na minha modestíssima opinião.

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    Respostas
    1. É de louvar que tu conheças tantas coisas sobre a história do audiovisual do século XX, ainda para mais tendo tu apenas vivido os últimos sete anos desse século.
      Sim,o Vergílio Teixeira foi um autor cujo reconhecimento ficou muito aquém daquilo que lhe era realmente devido. Ele e o António Vilar, que contracenou com a Brigitte Bardot herself, foram os percursores do Joaquim de Almeida e do Diogo Morgado em Hollywood. Isso do reconhecimento de Virgílio Teixeira apenas com a sua participação no Chuva Na Areia fez-me lembrar um cartoon brasileiro que vi no outro dia no Facebook, onde um actor moribundo espera ser recordado após a morte pela sua interpretação de Hamlet mas depois de morrer, as notícias dizem "Morreu o Tio Vavá da telenovela Paixão Tropical".
      Sim, Chuva De Areia destacou-se pela sua crueza com pouco alívio cómico, cujo impacto foi bastante forte no Portugal de então. Mas talvez por isso mesmo, seja uma das melhores de sempre.
      O Mário Castrim (não Crispim) era daquela facção da esquerda que via tudo o que se afastasse dessas ideologias como fascistas ou vendas ao capitalismo de direita. Só nos anos 90, já na recta final da sua vida é que refreou esses ataques, e é desse tempo que me recordo mais dele, por aquilo que ele escrevia na revista TV Mais.

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    2. Caro amigo, obrigado pela sua resposta. Esta paixão pelo audiovisual já vem desde a minha infância, pois desde bebé que convivo com a televisão, e lembro-me muito bem de que chateava a minha mãe para desenhar os símbolos do "C1", da "TV2", da "SIC" e da "4", que para mim foram os melhores caracteres usados na história da TV portuguesa.
      Também gosto do António Vilar, um belo galã, que teve a oportunidade rara de contracenar com a celebérrima vedeta Brigitte Bardot, facto que eu desconhecia por completo.
      As obras que a meu ver foram as mais bem-sucedidas deste grande galã do nosso cinema foram "Camões" de Leitão de Barros, o melhor épico nacional, e o clássico "Pátio das Cantigas" de Francisco Ribeiro, com Vasco Santana, António Silva e Ribeirinho,
      Já perdi o número de vezes que vi e revi estes clássicos do cinema, este último com uma 2ª versão, que pelo que eu vi no trailer, deixou-me deveras bem impressionado. Já estreou no novo Auditório Municipal de Alcácer do Sal, mas não tive oportunidade de ver. E pelo que eu sei, já é o mais visto de todos os filmes portugueses de sempre, depois do "Kilas" de José Fonseca e Costa, recentemente falecido, e do "Capas Negras" de Armando de Miranda, com Amália Rodrigues e Alberto Ribeiro.
      No que respeita à novela, faço minhas as suas palavras. E em respeito ao Mário Castrim, e peço desculpa pelo meu engano, estou completamente de acordo consigo, e talvez ele tenha feito tal nas crónicas da TVMais, que por acaso não sabia de tal, para descarga de consciência, e talvez porque começou a ver as coisas de outra forma, mais real, mais ponderada e mais verdadeira.
      Mas apesar das suas críticas um bocado irrealistas, não tenho nada contra ele, pois considero-o um dos mais bem-conceituados críticos de TV de sempre. Mas que ele era um bocado exagerado nas críticas que fazia, lá isso era.

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    3. Ja agora não se esqueçam do meu genérico da Chuva na Areia!

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    4. É uma honra tê-lo como visita na Enciclopédia, não é todos os dias que temos feedback de uma pessoa com um currículo como o seu!
      E dos genéricos nacionais o da Chuva na Areia é sem dúvida dos meus favoritos, fico sempre quase hipnotizado a ver a sequência das casas que vão surgindo e as que infelizmente desaparecem. A minha terra - Olhão - está agora numa fase semelhante, os edifícios antigos históricos (e as lojas, comércio e comunidade) vão apodrecendo e desaparecendo para dar lugar a mamarrachos incaracterísticos para lucro rápido...
      Cumprimentos,
      David Martins

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    5. Sim, apesar de não ter mencionado no texto, sem dúvida que o genérico de Chuva Na Areia é dos mais memoráveis da ficção nacional. Mas por aqui já falámos de outro mítico genérico do Carlos: http://enciclopediadecromos.blogspot.pt/2013/09/tempo-dos-mais-novos-1983-84.html

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